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Postagens

Atas do Copom

  Sou um leitor de atas do Copom, as reais e as imaginárias, as publicadas e as que invento. Digo imaginário porque encaro as atas como um gênero literário, o das “atas do Copom”, uma forma com características próprias, princípios de composição, uma lógica particular, uma certa maneira de conduzir as palavras, de fazê-las fluir pela página animadas por um narrador coletivo que se ausenta deliberadamente, talvez na ilusão de manter de pé a crença segundo a qual a ata se produziu a si mesma, é resultado de um espaço incriado, do gênio romântico da economia e das finanças, da regulação e da vigilância do futuro, deu-se a ler por decisão pessoal. Digo coletivo, e já nem sei do que falo. Quem narra uma ata do Copom, sobre quem recai o foco, a quem se destina? Tenho essa curiosidade sempre que uma nova ata vem à tona, quando o BC publica um resumo da ata naquele estilo típico de uma ata, impessoal, sem marcas, limpo e formal, de modo que sua produção só poderia ter se processado por obra...
Postagens recentes

Uma nota tardia

  Duas décadas escrevendo aqui e ainda não me acostumei. Acabo de reler uma crônica de 2008, outra de 2005, mais uma de 2011 e uma quarta de 2017, enfim, é como se fosse meu álbum de fotografias, e está tudo aqui. Não sei se já falei que muitas fotos de criança que eu tinha acabaram se perdendo, mofaram, comidas pelo bolor, ficaram esquecidas no quintal e apanharam chuva e sol e depois disso não serviam mais para nada, os fungos avançando pelas beiradas, devorando o rosto, as pernas, os braços, uma forma viva de corrosão do tempo. Então, para todos os efeitos, este é meu álbum, aqui exibo as imagens que escolhi mostrar para as pessoas, aqui faço a curadoria (palavra detestável) dos detalhes e das pequenezas sobre as quais decido escrever. E tem sido assim há 20 anos, isso mesmo, tinha entre 23 e 24 quando comecei, publicava contos e outras coisas de que me envergonho e por isso mantenho distante, longe da vista, exceto uma ou outra. Volto, e é curioso esse reencontro, porque não ...

PDFortaleza

  Penso nesse PDF da fofoca do pessoal da corrida, chamemos assim, sem tê-lo lido de fato, sem haver nada que me vincule ao grupo que constitui o núcleo dos personagens, sem simpatias nem antipatias. Tampouco sem supor que se trata apenas de fofoca, ou seja, sem me dar por satisfeito depois de ter passado a vista nuns trechos que me pareceram estranhamente sintomáticos de uma temporalidade, isto é, do zeitgeist, e já explico por quê. Fofocar é ato natural, fisiológico até, mas o que se nota ali é outra coisa, uma certa permissividade, um liberou geral do mau-caratismo, uma debacle ética, uma explicitação da zona cinzenta na qual um certo recorte de classe chafurda. Eu diria que o que se escreve e se registra no grupo de WhatsApp só pode ser dito hoje, mesmo no privado, porque houve um antes cuja função era exatamente liberar as amarras para esse tipo de conteúdo, fazendo-o soar como trivial quando não é, ainda que compartilhado entre as quatro paredes virtuais. Entendam que não que...

A fofoca como gênero literário

No Ceará, a fofoca é mais que atividade comezinha, traquitana verbal ou penduricalho doméstico: é coisa séria. Entre nós, fofocar é gênero literário cultivado desde a chegada dos primeiros portugueses. Consta que foi na base do disse-me-disse que o aldeamento passou a povoado e deste a vila, de modo que, desde a sua fundação, o Ceará dependeu da fofoca pra se firmar em meio às desavenças políticas e amorosas, impondo-se não pela força ou pelo convencimento, mas pela intriga. À falta de símbolos sagrados ou ameaças potenciais de estrangeiros, coube à fofoca esse papel social. Por aqui, a catequese sempre se voltou à vida alheia, com a igreja fundada no mundanismo do assunto privado e nossos padres dedicados ao evangelho da alcova. Novidadeiros, libertamos os escravos antes de todas as províncias do império, flertamos com o modernismo muito antes da Semana de 1922 e instituímos a fofoca como ponto cardeal da cultura com quase um século de antecedência em relação às fake news. Mais expr...

Bem-vindo ao deserto

Espaço vazio de convívio e devotado ao vaivém de delivery, a pizzaria se converteu nesse lugar de passagem onde a presença do cliente – no caso, a minha – era considerada como um quase inconveniente para o atendente. É pra levar? Como é, vai comer aqui mesmo? Tem certeza de que quer fazer como “os antigos” e puxar uma mesa? Vai aguardar e abrir a embalagem na pizzaria, e não em casa, no conforto da sala, vendo um episódio da série preferida ou ouvindo uma música escolhida por você? Pensei duas vezes. Tive dúvidas se não estava fazendo algo errado, obsoleto, contrário ao regramento usualmente admitido na minha comunidade, como utilizar pochete quando pochetes tinham saído de moda. Estava ali, parado, esperando que meu pedido ficasse pronto e fosse servido para então começar a comer. Nada de outro mundo, embora soasse dessa maneira. Mas alguns locais da cidade parecem ter deixado de lado esse aspecto coletivo, tornando-se corredores de passagem, meros entrepostos entre a mercadoria deman...

Iracema

A velha no terreiro da casa é minha avó. Está de braços estendidos, as mãos espalmadas para cima, os olhos fechados, o cabelo escorrido. A pele escura, mais para terra, os olhos gateados e um nariz bojudo. Sem o vestido gasto do dia a dia, que havia tirado e agora se encontrava enrodilhado no batente da cozinha, rente à porta que dava para o quintal amplo, com a goiabeira e as galinhas, os patos e outros bichos criados soltos, misturados aos que apareciam na vizinhança descampada. O corpo rijo de mulher jovem, nos braços umas marcas cuja origem não se sabia. A mãe, pelo menos. Eu também não. Talvez o tio soubesse, mas ele morreu de covid logo no começo da pandemia, o mais velho dos irmãos ainda vivos, de modo que os segredos da avó se enterraram com ele. Todos os demais estavam desde muito cedo estragados pelo trabalho com a borracha na região norte, comidos pela bebida e o cigarro ou extraviados na mata boliviana, devorados por onça ou doença ou aposta no jogo de baralho. É 1965, um...

Pândegas de classe

Há por todo lado essas narrativas que emulam a viagem de uma classe a outra, os chamados “trânsfugas de classe”, gente cuja trajetória aspiracional acabou por levá-los para longe de seu mundo de origem, se é que se pode falar num lugar assim, do qual se parte para nunca mais voltar, sem bilhete de retorno. Instalados agora no universo do “bem-bom”, permitem-se esses exercícios de estranhamento e de desfamiliarização comportadinhos. Conduzem-se sob o signo da ironia e do deboche e se congratulam como sócios-majoritários dessa confraria de emergentes para os quais o risco é sempre zero: debruçando-se sobre o passado, não arriscam nada, pelo contrário, acumulam capital simbólico com um estrato ilustrado sem ter de abrir mão da posição de classe. Eis o melhor dos mundos, o rebaixamento econômico deixado para trás como matéria-prima de criação e o presente de regalias como espaço de trânsito e lugar de onde se escreve com a intenção de provocar. Eu mesmo, tenho de admitir, me vi em algum mo...