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Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...
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Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

O que é um leitor

O que é um leitor, afinal? Em termos de pesquisa, de Retratos de Leitura, desse gesto classificatório que abarca o país para definir a categoria em torno da qual não há consenso à vista seja na literatura, seja na sociologia ou noutras ciências vizinhas. Leitor é quem lê, mas quem lê é sempre leitor? Digo, o ato da leitura pressupõe algo mais que a leitura episódica de um trecho avulso de livro no curso de um ano? É leitor quem lê dez páginas de um romance de 150? Ou quem se aventura num quadrinho? Ou quem sempre desiste na metade da obra? Ler é obrigatoriamente ler literatura? Ler o jornal é uma modalidade de leitura válida para efeito de inclusão no rol de leitores dignos desse nome? Ler placas nas ruas, anúncios, ler as pichações, as inscrições, os verbetes que pululam nas propagandas, os spans que se intrometem entre um vídeo e outro? Ler as legendas de um vídeo também é já leitura? E quanto às mensagens que pipocam no WhatsApp? Não seriam muito frouxos todos esses critérios que s...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Um conto atípico de Natal

  Voltei do conserto, não eu, quem dera, porque estou precisando de reparos depois de jogar futebol e sofrer avarias severas nos dois pés, ambos agora inchados. Encontrei uma tecla nova para o notebook entre muitas que não me serviam. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo da Cidade 2000, bairro peculiar de Fortaleza, tal como a Praia do Futuro, lugares que enunciam desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente, um aceno a certo horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento sempre por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferecendo sempre uma promessa. Um acidente qualquer no teclado e tudo se desmonta, toda a dicção e a segurança, certo jeito de batucar as palavras que se perde tão logo uma delas salta como dente mole. Num instante, temos a parte avulsa na palma da mão, imprestável para mais nada, o fragmento mágico da couraça de um animal antediluviano. É aí que entramos nessa roda-vida ...

A cidade é um ovo

A cidade é um ovo, escuto com frequência desmedida, ao que os mais exagerados acrescentam, em tom ainda mais incisivo: um ovo de codorna, o dedo em riste a advertir o interlocutor ingênuo. Um ovo pelo que tem de diminuta, claro, e isso sempre me pega, pra usar uma gíria de fabricação mais recente (já sem muito uso, tanto ela quanto a palavra gíria em si), porque no fundo se trata de uma metrópole, a quarta maior do país. Uma cidade com três milhões de pessoas e mais de uma centena de bairros. Espalhada como um ovo na frigideira, quente como ovo cozido, abafada como ovo na cuscuzeira, mas não exatamente um ovo, no seu sentido figurado, se é que consigo me explicar. Mas há quem insista: a cidade é um ovo. O que quer dizer, afinal de contas? É coisa para se investigar, apurar bem antes de falar e repetir, até para encompridar aquela conversa na mesa de bar ou na fila do pão, no cinema ou na praça, quando duas pessoas desconhecidas descobrem amigos comuns e intuem, como numa epifania, que ...