Pular para o conteúdo principal

Postagens

Terminando o ano

  Esse foi o ano dos bebês reborn e dos labubus, dos dispositivos de substituição e transferência de afeto, da desafetação e do dar de ombros para o desfile acelerado da vida. Ano do boom da IA e da promessa de um futuro edênico no qual o virtual e o real se equivalem, ano da tiktokzação do sofrimento e da grande diáspora das redes. Ano da fuga das galinhas, dos filmes de terror e do Neymar, ano da prisão e da romantização da prisão dos famosos e do presidente em sua eterna crise de soluço. Ano do vazamento e da sorte de adivinhar os temas sobre os quais milhões sonham em escrever na hora da prova, ano do mecanismo da sorte, da estrutura secreta que produz o futuro. Ano do ostracismo do panetone e da reabilitação do ovo, ano da graça e também da desgraça, ano do recolhimento meditabundo e do desbunde, da ioga e do forró raiz. Ano das desescritas do eu, da arte do baixo ventre, da grafia do corpo sem corpo, enfim, ano de toda sorte de golpe mercadológico para vender mais no país q...
Postagens recentes

Tempo

Tenho poucos minutos para escrever. Durmo mal e acordo pior ainda, pela manhã estou sempre vagando desacordado entre os cantos da casa. Vejo esse livro nas mãos, mas de fato não estou olhando para ele, estou fixando a imagem do objeto diante da retina sem que ele de alguma maneira se traduza como o que de fato é. O que de fato é me escapa a todo instante se me acho nessas situações de falta de sono, se acordo e penso um pouco e a TV na sala resiste a ligar e tenho de me manter alerta por algum motivo, como se um perigo me ameaçasse. Olho e é visível o esforço para entender que se trata de um livro de papel isso que seguro agora no banheiro. Um volume que abro ao ponto de quebrar.  Está lá, eu tento ler as primeiras frases, mas novamente constato sem drama que não estou aqui, não estou suficientemente presente, ou que não tenho as ferramentas para decifrar aquele código, não pude completar a formação que me habilitaria para essa tarefa de ler e compreender essa língua na qual tentam...

Cidade fantasma

    Considere uma cidade fantasma, seja qual for. A dos moradores expulsos por facção, por exemplo, lá onde tudo segue igual, mas diferente. Todos expulsos ou convidados a se retirar, ninguém pensou que seria interessante ficar, ninguém achou que poderia haver uma Bacurau cearense, ninguém talvez soubesse sequer o que era Bacurau. E assim a cidade se esvaziou e as pessoas se refugiaram na sede, ou seja, no centro, hospedadas nas casas de parentes ou amigos enquanto o pior vai passando, mas ocorre que é bem possível que o pior se instale de vez, ocupando o lugar das famílias. O mal de repente regendo os ritmos da vila, uma vila sem viva’lma, como nas histórias de Garcia Márquez, apenas uma vaca pastando no meio da praça. Eu vi isso no vídeo de um deputado bolsonarista que foi até lá para mostrar que as forças de segurança tinham perdido essa guerra, ele gravara aos berros andando na frente da matriz, ao fundo essa vaca malhada mastigando folhas de um galho de árvore baixo. Ne...

IA oracular

  Quero pedir conselhos a uma IA, recomendações sobre o que fazer nas férias escolares ou os números da Mega Sena para jogar no final do ano, mas esqueço que a inteligência artificial não é genuinamente preditiva, ou seja, não se trata de um poder oracular capaz de antecipar o futuro. Na verdade, a IA é golpista, nesse sentido que atribuímos a alguém que se faz parecer com o que não é. Uma estelionatária, eu acrescentaria, certo de que não estou (ainda) melindrando os sentimentos da máquina, embora tenha lá minhas dúvidas sobre a real capacidade de elaboração dos sentidos e de sua autonomia subjetiva, sobretudo quando a IA soa quase como um milagre ao sugerir livros que pretendo comprar ou afiançar a qualidade de um filme de cuja história acabo gostando. Não sei se por profecia autorrelizável ou coisa assemelhada, o fato é que a IA costuma servir para tarefas do dia a dia, escolhas triviais das quais abro mão facilmente para economizar energia e tempo, ainda que os acabe consumindo...

Do Nobel

  Do Nobel conheço bem pouco, apenas que se chama Laslo qualquer coisa e sua obra ainda é ignorada no Brasil, ou o país é ignorado por ela, não sei. Apenas um livro do senhor L está disponível em português, de nome também impronunciável, de modo que L e seus volumes seguem como grandes mistérios para leitores em língua nativa, exceto pelo fato de que esse único romance traduzido pode ser encontrado facilmente em qualquer livraria, mais ainda depois do prêmio, concedido semana passada após espera cheia de expectativa pelos brasileiros que viam alguma chance remota de vitória de Milton Hatoum. A láurea foi uma espécie de banho de água fria depois de Ernaux, Han Kang e outras mulheres – a autora de Vozes de Tchernóbil, por exemplo, ou mesmo Olga Tokarczuk – ganhadoras antes de L., cujo talento parece inegável, eu diria até que é ocioso tentar demonstrá-lo, bastando citar que L é a inicial do primeiro nome de um autor cuja imagem é indevassável e tão contrária ao midiatismo que se exi...

Ao farol

  Foi apenas quando o farol velho reabriu que me dei conta de que havia estado tanto tempo fechado para qualquer uso, seja o turístico ou o de morada para quem não tem, um monumento ao esquecimento na cidade cujo núcleo de povoamento já antecipava sua vocação futura: o aterro. E então lá se erguia a edificação, estridente como um sol de outubro, recém-surgida no horizonte da paisagem urbana e cultural, o ato de reentrega cercado desses ritos um tanto teatrais ao demarcarem uma autoridade que apaga o rastro do que veio antes. Na sobreescrita do gestor de plantão, o gesto de mando sobre a história, a pedra angular a partir da qual pretendem que o enredo seja contado de agora em diante, nem antes nem depois, porque a página que importa é a que se abre desde o instante em que o poder troca de mãos. Uma torre recortada contra o céu azul da capital cearense, triangulando com Iracema e Mara Hope a mesma cena, um processo erosivo de fatores antrópicos cujo ponto de partida é o mesmo em F...

Estética de condomínio

  Não sei se por encantamento ou capacidade de predição do futuro, mas o algoritmo das redes começou a sugerir publicidade de condomínios de alto padrão a cada vez que “entro na internet” (exatamente como se dizia antigamente). De repente, estou às voltas com promessas sedutoras de “vista privilegiada, conforto e modernidade para quem valoriza viver bem”, o que talvez seja o meu caso, talvez não, mas me dou por satisfeito com a dúvida e sigo em frente, com “tudo ao meu alcance” e sem gasto extra de energia, disposto a saltar de cabeça na piscina da bem-aventurança imobiliária. Paro e penso nessa exuberante gramática da abastança. Nela nada é escasso ou comedido, tudo transborda, pejado de sentido e prenhe de possibilidades, o tempo em suspenso, coagulando positividade e secretando sonhos. Numa mesma frase, combinam-se a “expressão de sofisticação” e a “elegância”, vazando “bem-estar” pelos cômodos espaçosos em doses cavalares, desde que eu não me importe em passar o restante dos...