Diz-se que a “dronização do olhar” é um fenômeno cultural responsável pelo alargamento da visão, mas talvez seja o contrário. Nele, a capacidade de enxergar se estreita, com a vista tornando-se mais postiça porque se projeta artificiosamente para um horizonte cuja amplidão não abarca, mas satisfaz o fetiche de que a totalidade está disponível para deleite imediato.
Eis um desafio e tanto para a crítica sob qualquer formato: consumar-se sem se consumir no engano. Não digo sequer estar à altura de seu tempo, mas não estar totalmente obsoleta no próprio instante de sua existência pela leviandade de depositar fé excessiva nesses dispositivos mágicos.
Penso no caso da adolescente sacrificada ritualmente pelas redes, por exemplo. Tudo ali é escancarado: a perda de aderência ao concreto transmitindo-se ao vivo, a desresponsabilização, o excesso de conexão que faz fermentar a massa egoica coletiva, judicativa e plenipotente.
Uma epidemia de virtude combinada a uma economia da fraude, que não por acaso se dão em simultâneo, enquanto as IAs substituem gradativamente o humano na tarefa de escrutinar e avalizar o que é da escala do humano.
Tenho essas coisas em mente quando a nuvem cinza estaciona sobre a cidade, alojando-se na garganta. Com o rosto coberto por um pano umedecido, leio sobre a doutrina do choque, mas tenho receio de já estar sob efeito de uma estupefação generalizada, suficiente para impedir qualquer apreciação desse evento do calendário do pré (apocalipse).
Um pensamento intrusivo muito frequente: nessa sociedade do pós-choque, a inflação narratológica não seria um sintoma mais do que evidente de toda crise de narração da atualidade, a doença esvaziando o sentido da narrativa, que por sua vez se vê incapaz de narrar a própria falência?
Desatento, clico na página do jornal. Uma notícia me interpela: escritora premiada usa inteligência artificial para criar uma trama sobre o avanço da IA no mundo. Demoro a entender que não se trata de um episódio daquela série famosa, mas da realidade claudicando, exatamente como naquele romance, “mil novecentos e não sei o quê”...
Cada vez mais espessa, a nuvem que se formara no céu continua a encobrir o bairro, a rua, a casa, o quarto. De suas varandas, moradores de prédios (cuja construção devastou uma parcela significativa da área verde do parque ecológico) gravam vídeos em tom de autêntica indignação.
Em meio à escalada da desordem ambiental e à busca estridente por transparência, me pergunto sobre o lugar do gesto crítico numa época de hiperexcitação medularmente estimulada por comandos de SEO de um grande irmão “tiktoker”. Talvez o mesmo da narrativa: esvaziamento.
Caio noutra notícia: os muito ricos expandiram suas posses nos últimos quatro anos, período no qual o fosso entre o 1% e os 99% se abismou. Nesse intervalo, o mundo passou por uma pandemia de Covid e outra de desdemocratizacão.
Pensamento intrusivo: talvez a roda do dinheiro funcione melhor em cenários desajustados, atravessados por pestes e geridos por governos autocráticos.
Antes do fim, digito no ChatGPT as seguintes orientações: preciso de crônica moderadamente pessimista, não muito exaltada, mas também não conformista, trágica sem ser vulgar, com alusão discreta a algum romance distópico citado por participante de reality televisivo de forte apelo midiático com vocação para subcelebridade e fortuna pessoal equivalente ao PIB de uma nação pobre.
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