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A vida em cortes

 

A vida se verticalizou com o “reels”, essa palavrinha que aprendi numa viagem a trabalho. No caminho, o fotógrafo me ensinou que agora o formato padrão da captura da imagem é esse, e então desenhou no ar um retângulo virado, exatamente do mesmo tamanho de um celular.

O que antes tinha amplitude agora se encurta, estreita. A gente perde o campo de visão, mas ganha supostamente em agilidade, uma vez que o salto de um vídeo pra outro é mais rápido. Basta deslizar, esse gesto cuja sonoridade, por si, já traz certo conforto.

Me pergunto sobre o tanto de problema que resolveríamos na vida se a função de deslizar e colocar de lado já existisse de fato, e não apenas nesses aparatos tecnológicos, como uma potencialidade que se realiza apenas ali, naquele quadrante, e nunca fora dele, jamais no real.

Não se deslizam o tempo morto, as horas numa fila, a espera, o semestre inteiro necessário ao aprendizado, em suma, tudo que não é primordialmente regido pelo gozo ligeiro, imediato.

Mas o reels é quase o real, enfatizou o amigo, certamente num tom jocoso que demorei a entender, eu mesmo já perdido na paisagem do sertão enquanto voltávamos. Tudo tão horizontal, as árvores secas, os juazeiros verdes pontilhando na terra marrom, aqui e ali um carcará rasgando o céu num azul cortante, ao fundo cordilheiras de serras.

Quanto de tudo não se perde quando a gente verticaliza o olhar?

Porque o reels, essa novidade que segue uma onda cuja origem não se conhece, mas que está lá, é algo onipresente, uma dessas necessidades que se tem de atender sem se saber muito bem por quê.

De repente, deixa-se o horizontal para trás, a extensão perde sentido em favor de um recorte que abre mão conscientemente de espaço e prioriza a economia de energia e a concentração unidirecional.

O foco é o personagem, a pessoa, o vetor dirigido ao indivíduo, ao corpo exposto que agora é mercadoria de exploração, como numa vitrine.

Tudo se individualiza no reels, embora se trate de uma rede que conecta usuários a outros usuários, mas cuja ideia de vida é menos a partilha e mais o descarte do excesso de ego.

As coisas se explicam aí, sugere esse amigo, ou talvez já seja eu pensando em voz alta com a cara grudada na janela. Se o celular é vertical, as redes de igual modo são verticais (TikTok, Instagram etc.).

O “smart” como extensão do braço. Olhos e ouvidos na ponta dos dedos numa varredura sem critérios da paisagem nua, despida de profundidade, atenta a todo detalhe desimportante.

Há ainda que se considerar o tempo, porque não se trata apenas do vertical, mas de um vertical comprimido em cápsulas de 30 segundos, às vezes mais, às vezes menos. Toda teoria, toda explicação, toda resposta abreviada e servida nessa vida zipada.

O vídeo é interessante, escuto ainda o amigo falar cada vez mais longe, mas seria mais ainda se fosse encurtado para que coubesse na plataforma.

Tudo melhor se menor, mais importante se mais curto, mais relevante se viralizável, mais viralizável se menos complexo e mais direto, mais direto se quase inaudível.

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