Ouvi a expressão com um quê de curiosidade, sem atinar para nada além do significado das palavras soltas: “quiet quitting”, algo como “saída silenciosa”, uma retirada sem dar na vista ou vazando sem alarde, para recorrer a uma construção vernacular com ar de cearensidade.
O leitor mais atento há de ter percebido que me interesso pelo jargão corporativo, sobretudo esse que tenta se fazer passar por coisa novidadeira e modernosa, quando no fundo é a quintessência da cafonice, do brega e do provinciano.
Todos esses head pra lá e pra cá, esses approach, call, brainstorming e branding, esses business e core business que salpicam na conversa com a sutileza de uma rasga-lata estourando no pé do ouvido. Enfim, essa galáxia cosmopolita conjugada com desenvoltura por qualquer pé-sujo.
Pois bem. Corri pra ver se era o caso, mas fiquei na dúvida. Primeiro porque o tal conceito não queria dizer exatamente uma demissão silenciosa, como tentaram vendê-lo inicialmente. Tampouco era uma operação tartaruga, como depois interpretaram, dessas que os agentes de trânsito costumam fazer quando reivindicam aumento salarial.
Mal traduzido, “quiet quitting” é fazer o combinado, o estabelecido no contrato, o feijão com arroz. Foi quando encasquetei com a expressão.
Principalmente porque ela parte desse entendimento ultraliberal de que qualquer um pode ser sua própria revolução, sua guerrilha ególatra e umbiguista. Ora, se você trabalha num ritmo frenético e se submete a horas ininterruptas de empenho laboral, de modo a alcançar metas fixadas com um sarrafo tão alto que é praticamente impossível batê-las, basta não o fazer.
Como o personagem de Melville, o adepto do “quiet quitting” dá de ombros e diz, suspiroso, tal como um Bartleby da geração millennial que, em vez do escritório, passa os dias no TikTok: “Eu preferiria não”, assim recusando qualquer excesso de trabalho.
Bom, vá dizer isso a um garçom ou a um motorista do Parangaba-Náutico, a uma atendente de lanchonete ou a um lojista do centro fashion. Chegue no ouvido do proletário em regime de labuta comercial e cante com voz suave e doce o mantra da revolução branca, de classe média e autossuficiente.
Passado esse momento de azedume no qual rejeitei o modismo de todo, jogando o bebê com a água do banho, tentei ver algo de positivo nele. Sim, qualquer coisa que me valesse, algo de bom que pudesse extrair.
Li que a coisa toda surgiu durante a pandemia, quando as pessoas voltaram pra casa e descobriram que trabalhavam pra caramba. Alguns conheceram melhor seus familiares. Uma nova sociabilidade se instaurou.
A própria noção de escritório e de presença se liquefez. O que é estar ativo e mobilizando energia criativa hoje? É bater o ponto? O isolamento social relativizou um bocado de hábitos mentais do mundo empresarial.
Um deles foi precisamente essa ideia de produzir sempre em potência máxima, de estar permanente dedicado a uma tarefa em todo o tempo. A ideia de que o trabalho é a sua vida, e vice-versa.
Confinadas ao espaço doméstico, as pessoas concluíram que há coisas além do trabalho. Um universo de experiências, de detalhes, de atividades ditas menores, mas cujo retorno para a saúde mental é incomensurável. A felicidade também passa por ali.
Talvez a história toda do tal movimento silencioso tenha que ver com isso, com uma mudança imperceptível que refaz estruturas sobre as quais se assentam comportamentos cujo preço foi sempre muito alto para o indivíduo. Não custa lembrar, porém, que nenhuma mudança se dá por ato de extremo voluntarismo pessoal. O buraco é sempre mais pra baixo.
Comentários