Pular para o conteúdo principal

Lenda lenga

Tinha essa cidade muito pequena e nela uma igreja também muito pequena, mas bastante simpática e até imponente para os padrões do lugar, que fica numa região de serra e por isso mesmo tem um clima mais agradável do que o do restante do estado, o que funciona como atrativo óbvio para turistas, esses seres naturalmente predispostos a procurar em outras paisagens aspectos que confirmem alguma impressão previamente estabelecida acerca do destino, a Amazônia ou os Andes ou Barcelona ou o Cumbuco.

A igreja é uma das três construídas por estrangeiros que chegaram à cidade ainda no século XVII, quando a região era habitada por índios de várias tribos e os papas católicos – há outros papas? - abriam mais filiais mundo afora que qualquer rede de comida fastfood.

Hoje, aprendemos que os índios ou foram mortos ou expulsos ou apenas ficaram no seu canto fingindo que não era com eles, como ficamos quando alguém nos pede algum favor que, por um motivo que não convém revelar, simplesmente não queremos prestar, e todos sabemos que há mais momentos assim em nossas vidas egoístas do que gostaríamos de admitir.

A igreja continua lá. É imensa, agora vejo, e se empoleira no ponto mais alto da cidadezinha, uma pedra gigantesca que se alça a mais de 900 metros acima do nível do mar. Daí o seu nome: igreja do céu. O céu é menos o lugar onde mora o Deus e mais o espaço formado por gases de composição química variada. O que confere o tom de azul é o predomínio de um desses gases. Pesquisem no Google. Está tudo lá.

Então, a história que pretendo contar tem essa cidade, tem uma igreja, tem os índios e os caçadores, escultores, viajantes, gente branca, preta e parda, tem animais. E tem alguém encarregado de narrar os acontecimentos.

Há também uma lenda, que se supõe tenha sido criada por índios: um dia, quando a igreja fosse terminada e tudo estivesse pronto, o que de fato levou muitos anos, não sei ao certo quantos, a vida nova dos colonizadores, as novas construções, o novo modo de adorar as divindades e de lidar com a natureza, as novas famílias, a nova comida, as novas roupas, os novos cheiros e doenças, quando tudo finalmente parecesse ter entrado nos eixos no novo mundo e as primeiras crias das primeiras famílias de forasteiros começassem a vingar, crescendo e correndo no mato, nessa hora sobreviria o mar, o grande mar, com grandes ondas, grandes pedras, e inundaria tudo que existisse na cidade. Nada escaparia às águas.

Nem mesmo a igreja, que, à exceção de uma porção do teto, ficaria inteiramente debaixo d’água, servindo de cama para as baleias. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d