Pular para o conteúdo principal

A aventura do conhecimento segundo o 'artista cearense'

Acima, flagrante do Artista Cearense em momento profundamente reflexivo.

Há poucas novidades. Os dias de festa revelaram-se novamente: rápidos.

Chegamos, voltamos. Viajamos à noite, regressamos ao dia. Fez sol, choveu fino, amanheceu nublado, a madrugada o teste de fogo para casacos e botas de cano longo, os cachorros e mendigos enrodilhados sob as marquises de lojas como a Raçça & Garra (moda íntima) e Sorveterapia enquanto nós, o público, desfilávamos a embriaguez adquirida mediante cartão (crédito ou débito).

Mas não se trata de cuspir no prato que comeu. Tirando o lado ruim, sobre o qual posso falar depois, foi tudo lindo, especial, verdadeiro e irretocável.

Uma pena. Levei comigo um caderninho de anotações que voltou imaculado. Uma única linha rabiscada, um único verbo esboçado, uma única preposição arregimentada. Nada. Embora tenha, nesses cinco dias de micareta do intelecto, formulado teorias curiosíssimas.

Turbinados pela bebida, embalados no sentimento que provocava a sensação de estar entre iguais (santa babaquice, meu deus!), esses axiomas costumavam associar temas apenas remotamente conflitantes, como a ‘partícula de deus’ e o aparente gauchismo dos cães da cidade histórica, o preço do linguado e a presença esmagadora de meninas com franja e Ray Ban, a caça aos fumantes promovida por comerciantes e o som estridente emitido por artefato de madeira (oferecido por um índio vestido a caráter, exceto pelo par de All Star que calçava) que simulava diferentes cantos de pássaros.

Imperdoável que não tenha levado um para aperrear o great novelist Jonathan Franzen durante mesa na festa.

Em suma, um lugar esquisitão, mas charmoso e aconchegante.

Revirando as memórias, todavia, produzo nada além de conjunto de impressões esfumaçadas. Sempre aos tropeços, mirava o cafezinho gratuito servido na casa da Folha de S. Paulo. O porto seguro, a porta de entrada, o ponto de partida do que quer que fosse, de lá seguíamos rumo, conforme ouvi de um filósofo popular sentado num banquinho do Itaú (souvenir do evento), “à saborosa aventura do conhecimento”.

Repito: a saborosa aventura do conhecimento.

Fico devendo impressões acuradas, definitivas, balizadas por leituras e autores.

Observação fora de lugar: é estranho supor que, a cada centésimo de segundo, uma fila se forme em lugar impreciso do globo terrestre.

Com que propósito?

Em breve: o Manual Prático do Artista Cearense, volume de poucas páginas, é preciso admitir, mas de inestimável valor literário e indubitável relevo social.

Aguardem.

Ass.: o Eterno Amador.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d