Pular para o conteúdo principal

'Cães heróis', de Mario Bellatin


Cães heróis, do Mario Bellatin.

É um desses livros da Cosac Naify sobre os quais se pode falar muita coisa sem mesmo ter lido nada, apenas olhando, sopesando e cheirando. Como não me interessa – não tanto - se a obra tem as costuras à mostra ou se é embalada em saco plástico, vamos à história, que ninguém compra livro unicamente para apreciar lombada.

Nem sempre.

Minhas escolhas como leitor não são tão amplas nem tão mágicas, o que me impede de alçar grandes voos de imaginação ao escrever sobre o trabalho de Bellatin. De qualquer forma, encarada essa limitação com bastante tranquilidade, posso garantir que Cães heróis é algo enigmático, não-imediato. Uma narrativa cujo sentido é quase sempre transitivo, ou seja, deriva de um ponto a outro e deste a um terceiro, construindo pontes entre passagens, mas sem jamais estabelecer claramente com o que estamos lidando.

Num jogo de esconde-esconde, Bellatin registra: “É difícil compreender as circunstâncias que fazem com que o enfermeiro-treinador continue na casa sem receber remuneração”. No romance, além do enfermeiro, os personagens são o homem imóvel, a mãe, a irmã e trinta cães da raça pastor belga malinois. Ferozes, os animais atacam ao menor sinal de seu dono, o homem imóvel, e pode mesmo quebrar alguns dentes ao morder as grades das jaulas em vez das pernas de alguém que esteja passeando na rua.

Curioso: as duas mulheres passam as horas separando e classificando sacolas plásticas, num movimento que nunca tem fim, pois logo chegam novas remessas de sacolas. As que foram classificadas são levadas por quem as tinha encomendado. É uma rotina extenuante, mas, ao que parece, preferível ao contato direto e frequente com o homem imóvel.

Admitamos que o homem imóvel seja uma espécie de tirano. É uma imagem um tanto óbvia, mas é a que permanece depois da leitura, talvez potencializada por construções semelhantes e recorrentes em outras narrativas, que refletem há muito tempo a figura do líder autoritário, protegido por um exército selvagem pronto a defender, mas também a virar-se contra quem o alimenta.

Por amor à leitura e à imaginação, resisto a essa interpretação. Ainda que o autor diga claramente que se trata disso, tentarei procurar uma imagem mais atrativa que a de um retrato enviesado da América Latina para colar à história.

Vale a pena ler? Vale, sim. É um labirinto prazeroso de atravessar o construído por Bellatin.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...