Ilustrando a postagem, mas sem qualquer relação com ela, wallpaper de Coragem, o cão covarde.
Acabo de voltar do Natal em família, quase nada diferente do que foi ano passado, todos reunidos em volta da mesa farta, dispensadas reza e oração, essas coisas que se interpõem entre nós e a comilança enfim, mamãe jamais ligou muito para religião, tanto que não fiz catecismo, papai também não, assim sempre pulamos a parte mais chatinha em que os convivas disfarçam sem sucesso o cheiro do peru indignamente arreganhado no centro da toalha comprada para a ocasião, nos abraçamos meio sem jeito e, nos 25 minutos seguintes, mastigamos bons bocados de carne temperados com Coca.
Penso que, com alguma variação, essa foi mais ou menos a ceia de Natal de todos vocês.
Ocorre que é possível rastrear e fixar então um esforço extra e desse esforço consanguíneo resultar uma prece ao nosso senhor, o rei dos reis, pai de todos nós, é o que dizem por aí há muito tempo, prece essa sempre puxada por alguém mais “espiritualizado”, algo que não aborreça os incréus tampouco desmereça a fé dos crentes no vingador dos justos.
Só então as bocas ruminam baixinho trechos de uma ave Maria empoeirada, antes um pai nosso, tudo cria do baú das recordações de infância e começo da adolescência, cantiga guardada a sete chaves por algum dos lobos cerebrais.
Cada um, disseram-me, tem o lobo que merece.
Mas, quero dizer, o melhor da festa natalina, a festa natalina mais rápida dos últimos anos, reconheçamo-lo, frugal em vez de farta, triste em vez de alegre, mas qualitativamente superior a qualquer outra se levarmos em conta o índice de espontaneidade envolvido no processo, apenas ao final de tudo e como que de repente atravessada por um raio de pensamento iluminado, Duda correu, melhor, saltou em direção ao quarto e de lá voltou com um punhado de papel nas mãos.
Eram cartas.
Imaginem que essa menina de seis anos, magricela e agora sem dois dos dentes da frente, essa menininha chacoalhando cabelos escreveu uma carta de presente para cada um de nós, adultos: eu, pai, mãe, irmã!
Só Deus sabe como estremeci de contente quando a Duda espatifou as cartinhas no chão do quarto, feito juntá-las todas em monte para somente depois proceder à distribuição. Tufão feliz.
Imediatamente também eu voei até a sala e exibi minha prenda, “mãe, para de comer e olha isto aqui”, mamãe disse “ela passou a madrugada inteira escrevendo – modo de falar – essa carta.”
As missivas da Duda consistiam em rabiscos de esferográfica azul que representavam os entes familiares, cada um dos quais bastante semelhante ao outro, nenhum dos desenhos atendendo a qualquer espécie de rigor de escala, mas absolutamente identificáveis quando encarados com bom humor e imaginação.
No meu desenho, por exemplo, Duda me excedia em tamanho, e seus cabelos mais pareciam ter sido hidratados em uma torradeira.
E foi assim o Natal, faço registrar em ata de cartório, um belo espetáculo de constância, exceto por Duda, a salvadora do meu reino.
“Titio, quando terminar vamos brincar de rrampiro?!”