Pular para o conteúdo principal

Modos de falar


MINHA GERAÇÃO está em marcha.

Aos bocados, jovens infantes Eduardos e Isabelis e também Ricardos e Anas saem de casa e ganham as ruas com um punhado de ideias que deverão ser prontamente defendidas em ringue público, praças, avenidas litorâneas e defronte às sedes de governos, de preferência sedes de governos autoritários cuja obra fundamente-se na ação contra os direitos civis de minorias, tais como negros, gays, mulheres (?) etc., ou, em caso negativo, quando esses governos se mostrem razoavelmente amáveis no trato cotidiano com as minorias citadas, podendo mirar-se nas ações gerais, administrativas ou não, como política externa, escolha de ministros, compra de deputados e por aí em diante.

PERSISTINDO O IMPASSE, se nenhum desses aspectos merecer nota depreciativa, sendo, ao contrário, fator de rara graça e expectante glória nacional, sugere-se (nossas fontes são as mesmas de Donatello, Barbara e Spiniel) a abrangência irrestrita da crítica, devendo o protestante entender que o bom governo é tão improvável quanto a pizza de carne do sol, que, ora bolas, é exequível, é fato social, mas enquanto requintada peça gastronômica carece de sustentação. De modo que o júbilo diante da eventual bem aventurança de tal ou qual gestão estatal jamais pode exceder mais que duas horas, a contar do momento inicial da estupefação.

Dito isso, sigamos.


MINHA GERAÇÃO DECIDIU MARCHAR repentinamente, sem estender o convite aos desatentos feito eu, que se entretinham alimentando peixes enquanto, do outro lado da rua, as engrenagens da história atual punham-se em movimento, rangendo lenta mas firmemente à força da agitação juvenil. De uma tacada, os mancebos, como se dizia muito antigamente, ganharam ruas, avenidas e edifícios do velho centro, minaram durante uma tarde inteira de sábado (em algumas metrópoles, os eventos estavam previstos para durar o quanto durassem) a ordem social das coisas, chamaram a atenção de quem passava de carro ou ônibus, resgataram a honra perdida dos narizes de palhaço e ousaram promover um apitaço bastante organizado.

FORÇOSO RECONHECER que minha geração perdeu de vez as vergonhas de seus tênis e optou, sem medo de parecer reacionária, pelo protetor solar fator 50, no que foi consideravelmente adulta, afinal onde já se viu chegar às vias de fato contra a bruta lógica da institucionalidade sem, todavia, cuidar da própria pele? Total absurdo.


De minha parte, a parte do observador desatento que sempre perde a hora das programações históricas, posso dizer: as marchas têm sido rigorosamente planejadas, senão vejamos. Hoje como ontem, no decurso do ato político-sócio-econômico-antropo-literário-visual, cada qual responsabiliza-se por seu grupo, que, uma vez formado, não cederá espaço a membros extraviados por conta própria ou oriundos de outras agremiações intendentes, preferindo-se com estes instituir-se outra célula, qual seja, a célula de membros extraviados.

ASSIM MANTÊM-SE OS LAÇOS que sustentam as marchas, assim detêm-se traições e avacalhações de natureza apolítica, a-histórica, acrítica, que, em remota hipótese, possam ocorrer e sujeitar o credo “indignai-vos” a algum desgaste por ora fora de hora.

Mas recordo agora um caso curioso.

OUTRO DIA, UM INTEGRANTE MAIS DEBOCHADO de codinome Espectro (ele, o integrante, não se sabe se homem ou mulher, engrossava a marcha contra o fim da meia cultural em shows de Marcelo Camelo) foi bastante censurado tendo em vista haver-se comportado no geral e no particular também de maneira inadequada ao que fora sugerido pelo zelador moral do protesto. Qual o quê...

ATO CONTÍNUO O ESPECTRO recebeu como punição a desfiliação do coletivo-mentor e, ao menos no calor da hora, 37 vetos na rede social denominada Twitter, vetos esses expressos ali sutilmente, mais tarde sendo interpretados menos como exclusão peremptória do que como francas manifestações de zanga inerente ao processo histórico e às dinâmicas internas das marchas, nada mais que isso, o que, para o integrante debochado de codinome Espectro em guerra contra o fim da meia cultural em shows de Marcelo Camelo, constituiu-se em alívio imediato.

Por muitas vias, tenho escutado que minha geração repudia o controle, a vigilância e as autoridades tanto quanto a geração anterior alimentava a intenção de permanecer à margem da história, cultivando hábitos camponeses. Viviam à espera do que quer que fosse, e nessa espera consumiram-se anos, que, muito naturalmente, foram vividos segundo padrões éticos e estéticos particulares, em consonância com os saberes da época, sim. Cabe-nos entender que foram felizes.

À MEDIDA QUE O TEMPO ESCORRIA, porém, e esses foram tempos passados num piscar de olhos, as crianças voltavam mais velhas da escola. Hoje, estamos nesse patamar, prestes a assistirmos a uma confrontação verdadeiramente sangrenta entre os entes pugnantes no seio da sociedade, visto que, a bordo dessas marchas há jovens reconhecidamente radicais, jovens esses que não se conformariam em bradar dizeres, afoguear-se por instantes, retornar à casa e ver outro episódio da série predileta.

Sobre esses e outros elementos estranhos, falaremos em ocasião oportuna.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d