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Essa outra coisa que falava


Bom, vamos a outra nota explicativa. Estamos cheios de notas hoje. Essa diz respeito a uma megarreportagem escrita por mim a propósito da explosão no consumo dos cadernos Moleskine. Entretanto, a coisa mercadológica acabou ficando em segundo plano no decorrer do trabalho. Por fim, como podem ver, acabei me detendo mesmo foi no aspecto da coisa em si - a coisa em si quer dizer nada menos, nada mais que o fato propriamente dito. Boa leitura, meninada!

NOTA Este texto foi publicado numa revista satírica de nome sonoro: AEROLÂNDIA, e seu conteúdo é de inteira responsabilidade do editor da magazine, e não, como sói acontecer, do autor da matéria.


O GUARANÁ DO ESPÍRITO

DEPOIS DA CIRANDA em mandala (adotada como política pública pela Prefeitura de Fortaleza e como dinâmica de grupo para liberar as energias ruins nas salas de treinamento das empresas de telefonia e garagens de empresas de ônibus), chega à capital outra novidade. Não é o metrô, infelizmente. Talvez seja coisa melhor: os cadernos Moleskine.

As almas que antes se afligiam porque lhes era vedado anotar frases inteligentes, como “ao lado dessa retração, e em relação direta com ela, manifesta-se fenômeno curioso, espécie de negativo da situação”, nos famosos notebooks, agora podem se refrescar com mais este guaraná do espírito.


Quer usar como caderno de desenho? Não conte pipoca. Claro que pode, menino, menina. Mais de sete grandes nomes da literatura em todo o mundo incentivam a prática.


A BOA NOVA está associada ao advento da Livraria Cultura, a cuja chegada atribui-se importância igual ou superior à dispensada ao Maio de 68 e ao Cinema Novo juntos. Nos círculos mais restritos do pensamento, garante-se: a vinda da Meca da leitura foi decerto mais festejada que o início do ciclo mudancista protagonizado pelos meninos do Cambeba (gratuita e desnecessária referência aos meninos da Vila) e menos vaiada que o sol na Praça do Ferreira.

Assim, ao lado das prateleiras repletas de edições também encontradas nas demais livrarias da capital cearense e, mais facilmente ainda, na internet, estão os famosos blocos. Ora, apenas em um dia, informou a assessoria de imprensa da livraria, 877 Moleskines foram vendidos. Somente um jovem estudante de cinema arrebatou nada menos que 36 bloquinhos. “Cada um de um modelo diferente”, assegurou a moça quase simpática que toca a comunicação da empresa, uma moreninha angulosa de riso fácil. A intenção do rapaz, ela continua, era distribuir os mimos entre os trinta primeiros seguidores que reproduzissem no blog de micropostagens Twitter uma mensagem promocional cujo teor não recorda.


Reparem que os Moleskines nos acompanham há bastante tempo. Precisamente, desde a antiguidade, quando os espíritos mais criativos já tiravam largo proveito das brochuras

POIS BEM. O leitor mediano, para quem se destina o grosso das publicações da editora Abril, inclusive as mais picantes, deve se perguntar: por que diabos esse caderninho de anotações faz tanto sucesso? A dúvida não é de todo estapafúrdia. Ela repousa no fato de que preencher as folhas de gramatura altíssima e qualidade insofismável do livro-objeto não constitui uma atividade rotineira, da qual façam parte os segmentos populares, ou mesmo os intermediários, da sociedade brasileira.

“Trata-se, por definição, de uma prática elitista salpicada de uma áurea intelectual da qual somente lhe roubam o glamour se se esforçarem sobremaneira (ARANTES, Mangueira). Ninguém se atreve a tanto, claro.

TROCANDO EM MIÚDOS, as brochuras, compostas de variadas maneiras e apresentadas sob muitos formatos e cores, integram o rol típico de souvenires mais desejados em todo o mundo. Não à toa, escritores famosos assumiram publicamente que escrever em um Moleskine tornou suas vidas algo mais prática. Delineadas no corpo sinuoso desses mimos, histórias antes sem graça ganhavam um colorido diferente. Não poucos artistas plásticos revelaram: seus trabalhos, quando burilados em um caderninho Moleskine, exibiam uma dimensão jamais pretendida. Músicos eram pródigos em reiterar caráter psicodélico de canções manufaturadas num desses bibelôs.

Artistas como Picasso, Matisse, Van Gogh, Breton e Hemingway são exemplos de que a influência de um Moleskine no processo agônico-criativo do homem moderno é bem mais profunda do que sugerem as pesquisas de apreço às marcas. Intui-se que os volumes deitem grossas raízes na alma do século XX, espraiando-se na do XXI. Exemplo de que as novas gerações também se rendem aos apelos dos monstrinhos de cantos arredondados (odor inconfundível e textura sensual, passando pelo indefectível elástico e pelas capas impermeáveis) é a surpreendente penetração que os livretos, concebidos na Itália mas fabricados na China, alcançam.

NO CEARÁ, além de Will Nogueira, Chico Lopes e Pedro Salgueiro, a avant-garde neopopsambarock encomenda anualmente os seus muitos Moleskines. Agora, com a chegada da livraria, garante-se a oferta dos quitutes da alma. O pensamento cearense agradece.

Por fim, Dave Eggers e Neil Gaiman são a prova de que um Moleskine é quase tão importante quanto a obra completa de Shakespeare. Eles compuseram seus personagens fantásticos rabiscando-lhes as características nos fabulosos cadernos, que também são merecidamente referidos naquela velha canção do Pink Floyd:

I've got a little black book with my poems in.

A PAR DE MAIS essa saborosa novidade, as secretarias de cultura e educação do Estado interrogam-se há meses: se, em vez de computadores e prendas ordinárias (cheques de R$ 1.500, por exemplo), pobres de valor estético e material, as escolas fossem equipadas com Moleskines, nossa média no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) não seria de pronto vitaminada?

Ousada, a proposta não encontrou resistência até aqui.

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