Bom, se escritores realmente precisam viver para ter algo a dizer? SEI LÁ. Eu, que não sou totalmente escritor – sou jornalista que se vira nos trinta - digo mesmo quando não vivi. Quer dizer, mesmo sabendo que o que vivi está aquém dessa minha vontade. Precisamente: aquém da vontade de escrever. Entenderam?
Vou desenhar: há essa coisa chamada vontade. E há o teclado, que faz barulhos agradáveis quando nos pomos a digitar incansavelmente. É gostoso ouvi-lo por dias e dias, noites e noites. Por fim, há a coisa a ser dita, que pode ser confusamente descrita como a mensagem.
Há mensagens e não-mensagens. Comumente, as não-mensagens são tomadas como mensagens e vice-versa.
Mas digo sempre incorreto. Perdão. Deixa pensar, deixa pensar. Dizer por dizer é bobagem. Tem que haver algo a ser dito, comunicado. Algo e não apenas palavras plasticamente postas no papel. Digo: não se trata tão somente de enfileirar palavras, construir frases belamente contorcidas, dar forma a qualquer coisa que se tenha escondido no peito – sou tragicamente exagerado – ou em algum outro lugar do corpo. Certo? É o que penso.
Mas, Sérgio interroga: “Por que identificar essa vivência apenas com a aventura ou a labuta pesada?” Afinal, passar o café enquanto o vizinho de cima espanca o filho mais novo e a mulher do 451 trai o marido – são constituiriam algum tipo de experiência re-le-van-te? E se apenas passássemos o café, sem intrigas maiores ou menores?
E que dizer de andar na rua, apanhar o ônibus, tomar sorvete, comer uma mulher mais velha, reprovar disciplinas na faculdade, brigar com a namorada? Que dizer da coisa puramente ordinária da vida? Tomar um porre de vodca com Fanta laranja, sim. Eu mesmo fiz isso. Foi o primeiro porre da minha vida. Como resultado imediato, tive patacas vermelhas espalhadas pelo corpo inteiro no dia seguinte. Como resultado mediato, minha namorada – a primeira – terminou comigo. Porque – bêbado – tratei de me haver com outra menina. Num canto, havia a irrefutável testemunha ocular.
Editor, Lucas Murtinho assevera: “Desculpa, essa última mensagem foi do gato, ele gosta de passear pelo teclado” – o gato de Murtinho havia realmente digitado qualquer coisa ininteligível no teclado apenas pelo soberano deleite de ouvir o som algo enigmático das teclas. Por meu turno, cri que fosse alguma razão matemática exposta por ele ao problema. Do tipo: “Cara, essa questão é complexa. Segundo Avicena...” E por aí vai. Mas o que disse foi simples: “Eu acho que habilidade com palavras não basta, o escritor também precisa ter habilidade com histórias. Viver muito ajuda a ter boas histórias para contar, mas não é fundamental”.
Isso quer dizer exatamente: posso ter pouca vivência prática da coisa puramente estúpida que é viver, mas, acredita Murtinho, se tiver habilidade com palavras e histórias, estou feito. Saquei.
Sempre à cata do avesso de qualquer problema remotamente banal, Sérgio questiona-se: “Que grandes mergulhos na ‘vida real’ deram Flaubert e Kafka (cito os primeiros que me vêm à cabeça) antes de escrever suas obras-primas?”
Eu complemento: e Pedro Salgueiro? E José Alcides Pinto? E Tércia Montenegro? Foram estivadores, prostitutas, camelôs ou cobradores de ônibus antes de resolverem contar de próprio punho as suas histórias?
SEI LÁ.
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