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Uma palavra antes, durante e depois

Preciso urgentemente de um caderno de anotações. E não precisa ser Moleskine, não. Pode ser de pauta dupla, do tipo que você usava na primeira série, ainda nos 80. Ou na oitava, agora nos 90. Claro, de mentirinha.

Preciso anotar. Venho sobrevivendo sem anotações, pequenas ou grandes. Depois que conheci os computadores, larguei de vez a caneta e o papel. Por mim, as redações no vestibular seriam todas digitadas. Não vejo qualquer problema nisso, apenas vantagens. A principal delas: impedir que as mãos suadas deslizem através do corpo esguio da Bic.

Um pedido público: cara, leva esse bagulho pra faculdade, por favor. Preciso ouvir Elvis Presley. “My way”, especificamente.

Curioso: ontem era segunda-feira. Eu juro, ontem era segunda. E hoje – o fato inusitado – é sábado. Quer dizer, saltamos da segunda para o sábado. Viajamos no tempo, mas não no espaço.

Hoje estou chato. Mal consigo escrever. Minha vista está embaçada, os óculos velhos não servem mais, as hastes tornaram-se depósito de poeira e essas coisas todas que circulam no ar e grudam na gente, enfiam-se nos buracos e se avolumam. Como poeira, pele morta, cabelos parasitas.

Mas cabelos parasitas não saem voando por aí, atacando as pessoas. No máximo, espetam-se no ar, contrários ao destino que a massa capilar assume nas cabecinhas das meninas que, geralmente, se irritam quando vêem um parasita.

Estou chato e sem assunto. Gosto de escrever no domingo, mas hoje é sábado. E ontem foi segunda. Minha semana está bagunçada, os horários permanecem os mesmos, as horas não se alteraram. Mas os dias foram postos de ponta-cabeça.

Domingo é melhor para escrever. Tem os jornais e o clima de domingo. Tem o presságio da segunda-feira. Tem os programas de domingo. Além disso, detesto sair de casa no domingo. Quando tenho de fazer isso, brigamos. Ela porque não vê diferença entre um sábado e um domingo. Eu porque adoro sair de casa fazendo cara feia, chegar à parada do ônibus mordido. Ela diz isso: mordido.

Conhecem algum oculista que cobre menos de vinte reais por uma consulta? Escrevam para mim dizendo onde, por que e quando e arrisquem-se a ganhar sabe-se Deus o que dentro de uma caixa de sabão que prometo enviar pelos Correios antes do fim de ano. Ou seja, como presente. Desejo a todos um maravilhoso 2009. Tenho esses óculos desde 2000. Do contrário... Do contrário ele não seria percorrido por veios de cores estranhas. Nem as lentes seriam tão arranhadas. Nem eu pareceria tanto um jovem e tuberculoso escritor do século retrasado.

É tempo de Bienal do Livro. Como vão todos? Indo à festa do livro e da leitura diariamente? Curtindo a programação de shows etc.? Como dizem os jornais, é para todos os gostos. TEM TEATRO MÁGICO? Claro que tem. Tem CORDEL DO FOGO ENCANTADO? Obviamente. TEM FERNANDA TAKAI? Mais uma vez. Tem ingressos?

Não, eles acabaram bem cedo.

Fazem bem. Ia hoje, mas preferi ficar em casa. Quer dizer, até agora ela não chegou. Foi para a faculdade fazer um trabalho, desenhar mapas cartográficos, essas coisas bobas que só os geógrafos conseguem achar interessante. Sabem os contornos de lagoas e demais recursos hídricos? Sabem as planícies, os planaltos, as ilhas, as montanhas, as serras e os pequenos animais que correm livres pelas campinas? Os geógrafos os adoram.

Por tudo isso acabamos desistindo da Bienal. Sim, desistindo.

Hoje, às 19 horas, tem uma palestra do José Eduardo Agualusa, um escritor metade angolano, metade brasileiro. Quer dizer, ele é angolano, mas é também filho de pai brasileiro. Falei com Agualusa por e-mail. O escritor respondeu algumas perguntas rapidamente. Perguntas estúpidas, diga-se. Feitas às pressas porque o convidado tinha compromisso logo mais, uma reunião, e no dia seguinte – hoje – apanharia um avião para Fortaleza e ficaria um bom tempo sem Internet. Então pesquisei ligeiro na rede, li outras entrevistas, um conto no “Releituras”, vi algumas fotos. E mandei sete perguntas. Ele respondeu quarenta minutos depois. Deixou uma de fora.

Sobre o que trata o seu novo livro? Voltou em branco.

O resultado deve ter chegado à mesa de vocês nesta manhã. O que acharam? Gostaram da foto do Dia dos Pais? Alguém disse que era tipicamente propaganda de sapato. Eu concordo.

Amanhã tem resumo da semana. Gosto de escrever após ter lido a coluna do Marcelo Gleiser na “Folha”. Ele é astrofísico. No terceiro ano, queria ser astrofísico. Adorava a parte dedicada ao tema no livro, que reunia também mecânica e óptica. Mas acabei me apaixonando mesmo foi pela eletricidade. Pensei na engenharia elétrica, no dinheiro, na rotina. Pensei na psicologia, no dinheiro, na rotina. Pensei em literatura, no dinheiro, na rotina. Estudei. Acabei desistindo cinco semestres depois. Pensei no jornalismo. Não pensei no dinheiro, bem menos na rotina. Não desisti ainda. Estou aqui. Pago por isso.

As colunas do Gleiser – que tem nome de fenômeno – não são lá essas coisas. Ele escreve para um público que sequer imagina o que seja a força da gravidade e quanto ela vale na Terra. Entretanto, algumas vezes o colaborador acerta. Gosto quando ele acerta.

Gosto quando as pessoas acertam alguma coisa. Pode ser um alvo, um tiro, uma prova, um soco, um texto, um quadro, uma música, um beijo, um chute, um cheque voador, um tapa, um puxão de cabelos, uma nota, um abraço. Não importa. Quando elas acertam, me sinto feliz.

Por tabela, sim.

Aos poucos, a vista vai se desanuviando. Mas acho que é tarde. Estou acabando. Afinal, sábado é uma exceção. Como disse, escrevo no domingo, meu dia predileto. Porque depois é segunda-feira. Entre ela e o sábado, são dois tempos.

Antes do fim: ontem, sem ter o que fazer, vi novela. “Os mutantes”, da RECORD. Sim, essa mesma. Gente, não consigo acreditar até agora. Se me derem 100 reais por mês – descontados os juros -, alguns atores e atrizes do curso de artes cênicas cujas notas estejam entre as piores da turma e uma câmera de quinta categoria, quebrada, arranhada mas com o botão on/off funcionando plenamente, faço coisa melhor.

Até amanhã. Agora tenho de ler. Agualusa que espere a próxima Bienal.

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