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Sangria


Gosto de como soa a palavra sangria em alusão a esse transbordamento d’água do açude em tempos de céu escuro, de como tenta abarcar um fenômeno que, na verdade, extrapola seu sentido imediato, que é o do escoamento, numa semântica hidráulica que se mecaniza se examinada apenas sob esse ângulo.

Mas sangria quer dizer mais que apenas verter esse volume líquido que ocupa um espaço e que, por excesso de precipitação, quando o inverno é bom para molhar e para plantar, acaba por extravasar.

Quem é de fora do Ceará talvez não entenda o que significa ao pé da letra não o vocábulo em si, de resto ordinário, mas o conjunto de sensações e memórias que a sangria evoca quando passa a circular em meio às chuvas. Nessa contagem volumétrica que vai num crescendo ao longo da estação até atingir um clímax, regulando o calendário, transmite-se bem mais que a acepção de uma passagem.

De repente, como se por efeito dominó, os açudes e os rios se comunicam, as águas de uns sobrepondo-se às de outros, que as recebem e as repassam em seguida, nesse movimento de restituição de uma ordem de vida em terra de chão marcado por essa gramática do escasso e da seca.

Novamente, os polos se invertem, e o enxuto se umidifica, o cinza esverdeia e o raso se aprofunda, numa circularidade que não elimina o que há de beleza nesse retrato de súbito alterado. Pelo contrário, haver para amanhã a expectativa de cheia é sempre desculpa para esperar, seja o que for.

Eis, então, noutra ponta da língua e carregando outros significantes, a sangria e suas derivações: sangramento, sangradouro e por aí vai, todas conectadas por uma mesma familiaridade linguística.

Entre nós, diz-se mais frequentemente: o açude sangrou. Não qualquer açude, mas o da cidade, do município, do interior de cada uma, que atende por um nome, como os de casa. Em Canindé, por exemplo, chama-se Escuridão, e seu espelho de fato não revela o que há por trás, como se fosse sempre noite lá dentro – um açude da opacidade.

De modo que a sangria aciona proustianamente lembranças de um outro lugar no eixo espaço-temporal, trazidas de volta por essa emersão dos conteúdos retidos e que sangram junto com a sua enunciação. É outra vida essa que vaza de sua forma, feita presente por esse ato de fala tão simples.

À menção ao termo e a seu radical (“sang”), cuja simbologia pode levar ao “sanguíneo” e ao “sangrento”, segue-se uma enxurrada de rememorações, como naquela lavoura de que fala Raduan Nassar: arcaica porque se liga à terra, e tudo que é da terra não se evade com o tempo.

Nada há de exagero dramático, portanto, em dizer do açude que sangra, verte ou descarrega, três palavras assemelhadas, mas cujo emprego instaura mundos diversos, não comparáveis entre si pelo que têm de poder de sugestão. Um açude que verte não é o mesmo que sangra.A escolha pela sangria, e aqui já especulo e ensaio, é reveladora talvez de uma inclinação ibérica ou árabe ou de ambas, quem sabe indígena ou negra, a cada raiz devendo uma porção de sua sonoridade consanguínea.

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