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EMÍLIO

Abaixo, um conto bem antigo. Mas antigo mesmo.

Quando viu, eram apenas dois. Foi até a cozinha, despejou café numa xícara e retomou o posto. Havia uma pequena mas iracunda multidão na calçada. Eis o princípio de tudo: uma iracunda multidão.

A dois palmos de distância de cada um deles, o menino recebia pontapés, socos e safanões. Apanhava no rosto, nas costas, nas canelas. Tentou levantar-se, caiu. Não se sustentava nas pernas finas, finíssimas. Uma senhora surgiu na varanda do apartamento. Via tudo. Depois fechou as janelas, cerrou as cortinas e foi cuidar de enxugar a louça do almoço. Um outro que passava de bicicleta parou, olhou, olhou e olhou. Em seguida empoleirou-se no transporte e foi embora.

Um terceiro assistia, apenas.

Robusta, a roda enchia-se de cores e tamanhos. Nela havia mulheres, senhoras, crianças, idosos, homossexuais, negros, brancos, mulatos, pardos, ricos e pobres. Era uma roda crescente, gigante. E assustava. Não se contentava em bater, não. Feria com palavras, gestos e pensamentos. Todos contribuíam de alguma forma. Uns menos, outros mais.

Menos ele, que, sem querer, amortecia os humores. O menino recebia chutes no estômago, tapas na cabeça, cusparadas. Um soco acertou-o na ponta do queixo. Ele viu estrelas. Um chute raspou-lhe a orelha, que ficou ardendo. Um gesto pegou-o desprevenido. Ele desejou ter força.

Desocupado, o terceiro observador imaginava: seu papel já fora estranhamento definido antes mesmo que cometesse o delito – apanharia. Apanharia, observaria, lavaria a louça, seguiria no seu rumo usual. Um planeta não pode mesmo desviar-se de sua rota, ou pode? Achava que não. Rotas não se desobedecem.

Consumiram-se duas horas na purgação. Ele, sem nome, já bastante ensangüentado, os outros em redor, extenuados mas ainda batendo. Bater não tinha fim, tinha fim.

Súbito o menino ergue-se nas pernas. Fraqueja, e consegue impor-se ao próprio desespero. É quando mira além da roda, que se agigantara ainda mais. Um homem cruzava a rua montado num cavalo. Não se viam cavalos por ali há pelo menos vinte ou trinta ou mais anos. O menino não se assusta – achou que tivesse morrido e chegara ao céu. O homem estaca a marcha e aponta qualquer coisa a meio metro do nariz do cavalo. Trocam acenos de cabeça. Exatamente como nos desenhos que via na televisão, o cavaleiro some.

O menino transforma-se. Duas vezes mais alto e forte e belo e disposto e cego que qualquer um deles jamais fora um dia, fustiga a todos.

O caminho de volta pra casa é solitário, livre de dor. O terceiro observador olha em torno. A rua escurece, chove. A chuva passa, a noite esfria. Longe, enxerga algo. Estreita os olhos, espreme-os. Está difuso, mas parece um cavalo.

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