FLORES QUE INTERROGAM
FLORES AZUIS, SEGUNDO ROMANCE DA ESCRITORA CAROLA SAAVEDRA, LANÇA MÃO DA NARRATIVA EPISTOLAR NA CONSTRUÇÃO DE UMA ESTRANHA HISTÓRIA DE AMOR
HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO
Flores azuis é um livro que exige releitura imediata. Porque os farelos de pão se perderam no caminho, e os caminhos da leitura também se perderam no caminho. Por esta razão recomeça-se: porque, ao final, o romance de Carola Saavedra abre-se. E não propriamente uma linha de chegada espera o leitor, mas várias. Não exatamente uma conclusão, mas um ponto final que remete automaticamente ao primeiro ponto.
“O que acontece depois que a história acaba? Não estará aí o mais importante, não estaremos perdendo alguma coisa?” Marcos separou-se da mulher recentemente. No apartamento novo, os pertencentes esperam ser desencaixotados. A rotina bruscamente alterada. Agora, tem a visita de Manuela, a filha de três anos, todos os fins de semana. Deve entreter a menina, ajudar a educá-la. Ainda que pareça tarde. Um estranho sentimento indispõe pai e filha: medo. Marcos teme a própria filha, que, algum dia, será como a mãe. O ex-marido sente nas mulheres que até ontem faziam parte de sua vida uma estranha ligação que ele mesmo nunca chegará a entender.
Então as cartas de envelope azul passam a chegar. Uma a uma, a partir de 19 de janeiro. Sem remetente, sem destinatário, sempre deixadas na caixa de correio. Assina-as uma mulher chamada “A”. Diariamente, Marcos recebe as cartas endereçadas a alguém que não ele. Supõe-se que haja morado ali antes, nada mais. Marcos sobe com elas até o apartamento, deposita a correspondência em cima da mesa, prepara um café, senta-se. Só depois lê. Primeiro com espanto, depois com interesse desmedido. Ler as cartas rapidamente torna-se a sua obsessão.
Flores azuis fala dessa obsessão. Alternando a primeira pessoa (voz da autora das cartas) e a terceira, quando a vida de Marcos é narrada, o romance investiga com lupa de cientista uma situação até certo ponto extravagante: um homem que se converte em leitor voraz das coisas de uma mulher cujo rosto ele nunca viu e que, por essa razão, passa a vasculhar nas ruas da cidade, nas lanchonetes, nas paradas de ônibus. Do outro lado, uma mulher que escreve nove cartas, postadas durante nove diferentes dias da semana para um leitor que ela amou. Um homem que ela pretende reter novamente, trazê-lo de volta, agora pela palavra. Como o leitor, seduzido pela palavra. Nas cartas, essa mulher extrema se entrega. Fala da separação, dos últimos instantes, dos braços, da textura do toque dos braços, dos momentos de sacrifício, da perda, do fim, da violência. E especula sobre o começo do fim de tudo. Não sem espanto, também se interroga: quando o amor acaba? “Haverá um instante, uma linha divisória, uma revelação, um despertador interno que toca, e pronto, acordamos e dizemos, ainda sonolentos, acordamos e dizemos, pronto, acabou”?
Em entrevista divulgada por meio de um vídeo promocional, Carola deu pistas do romance. Entre outras coisas, disse que tinha pretendido falar de “sentimentos extremos”. Havia escrito Toda terça, seu primeiro romance, uma história de desamor. Agora, narraria um caso de amor radical. A radicalidade de Flores azuis é a procura, que pode, em alguns casos, devorar, subverter a ordem normal do dia-a-dia. Que transforma expedientes no trabalho em horas de espera, essas horas de espera em busca, essa busca em desespero, esse desespero em abismo.
No romance, Carola confirma o talento para a narrativa. Sem pirotecnias, ela aposta no inteligível, no diálogo e nunca no atropelo sintático. Envolve serenamente. Ainda que lamente a perda das coisas que se sucedem no tempo e das quais pouco se sabe, a escritora libera os leitores para que encontrem, por si, as próprias pontas de uma história falsamente banal, previsível. À semelhança do amor, que quase nunca é o que se espera dele.
SERVIÇO:
Flores azuis (Companhia das Letras, 164 páginas), de Carola Saavedra. Preço: R$ 36.
FLORES AZUIS, SEGUNDO ROMANCE DA ESCRITORA CAROLA SAAVEDRA, LANÇA MÃO DA NARRATIVA EPISTOLAR NA CONSTRUÇÃO DE UMA ESTRANHA HISTÓRIA DE AMOR
HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO
Flores azuis é um livro que exige releitura imediata. Porque os farelos de pão se perderam no caminho, e os caminhos da leitura também se perderam no caminho. Por esta razão recomeça-se: porque, ao final, o romance de Carola Saavedra abre-se. E não propriamente uma linha de chegada espera o leitor, mas várias. Não exatamente uma conclusão, mas um ponto final que remete automaticamente ao primeiro ponto.
“O que acontece depois que a história acaba? Não estará aí o mais importante, não estaremos perdendo alguma coisa?” Marcos separou-se da mulher recentemente. No apartamento novo, os pertencentes esperam ser desencaixotados. A rotina bruscamente alterada. Agora, tem a visita de Manuela, a filha de três anos, todos os fins de semana. Deve entreter a menina, ajudar a educá-la. Ainda que pareça tarde. Um estranho sentimento indispõe pai e filha: medo. Marcos teme a própria filha, que, algum dia, será como a mãe. O ex-marido sente nas mulheres que até ontem faziam parte de sua vida uma estranha ligação que ele mesmo nunca chegará a entender.
Então as cartas de envelope azul passam a chegar. Uma a uma, a partir de 19 de janeiro. Sem remetente, sem destinatário, sempre deixadas na caixa de correio. Assina-as uma mulher chamada “A”. Diariamente, Marcos recebe as cartas endereçadas a alguém que não ele. Supõe-se que haja morado ali antes, nada mais. Marcos sobe com elas até o apartamento, deposita a correspondência em cima da mesa, prepara um café, senta-se. Só depois lê. Primeiro com espanto, depois com interesse desmedido. Ler as cartas rapidamente torna-se a sua obsessão.
Flores azuis fala dessa obsessão. Alternando a primeira pessoa (voz da autora das cartas) e a terceira, quando a vida de Marcos é narrada, o romance investiga com lupa de cientista uma situação até certo ponto extravagante: um homem que se converte em leitor voraz das coisas de uma mulher cujo rosto ele nunca viu e que, por essa razão, passa a vasculhar nas ruas da cidade, nas lanchonetes, nas paradas de ônibus. Do outro lado, uma mulher que escreve nove cartas, postadas durante nove diferentes dias da semana para um leitor que ela amou. Um homem que ela pretende reter novamente, trazê-lo de volta, agora pela palavra. Como o leitor, seduzido pela palavra. Nas cartas, essa mulher extrema se entrega. Fala da separação, dos últimos instantes, dos braços, da textura do toque dos braços, dos momentos de sacrifício, da perda, do fim, da violência. E especula sobre o começo do fim de tudo. Não sem espanto, também se interroga: quando o amor acaba? “Haverá um instante, uma linha divisória, uma revelação, um despertador interno que toca, e pronto, acordamos e dizemos, ainda sonolentos, acordamos e dizemos, pronto, acabou”?
Em entrevista divulgada por meio de um vídeo promocional, Carola deu pistas do romance. Entre outras coisas, disse que tinha pretendido falar de “sentimentos extremos”. Havia escrito Toda terça, seu primeiro romance, uma história de desamor. Agora, narraria um caso de amor radical. A radicalidade de Flores azuis é a procura, que pode, em alguns casos, devorar, subverter a ordem normal do dia-a-dia. Que transforma expedientes no trabalho em horas de espera, essas horas de espera em busca, essa busca em desespero, esse desespero em abismo.
No romance, Carola confirma o talento para a narrativa. Sem pirotecnias, ela aposta no inteligível, no diálogo e nunca no atropelo sintático. Envolve serenamente. Ainda que lamente a perda das coisas que se sucedem no tempo e das quais pouco se sabe, a escritora libera os leitores para que encontrem, por si, as próprias pontas de uma história falsamente banal, previsível. À semelhança do amor, que quase nunca é o que se espera dele.
SERVIÇO:
Flores azuis (Companhia das Letras, 164 páginas), de Carola Saavedra. Preço: R$ 36.
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