Pular para o conteúdo principal

Palavras pra riscar de 2022

 

Tenho uma lista de palavras sem as quais a vida talvez seja mais fácil, mais agradável, menos azeda e repetitiva. Em bom cearensês, são termos que já estão fubá, como aquela camisa comprada dois anos atrás e cuja gola se afolozou rapidamente, a manga enviesada que não presta mais. Ou aquela calça de elástico morto, cor de burro quando foge, como dizia a vó.

Enfim, um léxico já usado e abusado, seja porque recorremos muito a essas palavras, seja porque, por preguiça mesmo, porque procurar palavras novas é uma tarefa e tanto, a gente se cansou e ficou dando voltas em torno do mesmo sentido, cavando um buraco nas palavras e delas extraindo até a última gota de significado.

Daí que resiliência, que já era antiga e gasta em 2016, hoje não tenha quase nada a dizer, salvo em frases feitas ou clichês de propaganda de banco. E reparem que a publicidade de bancos são os cemitérios das palavras. Quando alguma delas figura numa peça com uma menininha e uma atriz consagrada, por exemplo, é porque seu poder de mudança se atrofiou, morreu feito a estampa da roupa de cinco anos atrás, a paisagem desbotada nas costas do agasalho.

Mas e aí, o que fazemos quando uma palavra deixa de fazer sentido, quando desaparece ou é invisível porque ninguém liga mais pra ela? Palavras também morrem, são substituídas, esquecidas numa gaveta, ou ficam apenas guardadas até que o tempo as recupere?

Quando era criança, ganhava roupa dos primos mais velhos, num intercâmbio para o qual eu contribuía com as minhas próprias roupas velhas, que eram cedidas para os primos mais novos e assim por diante. Tal como o Simba, a gente era apresentado a um guarda-roupa familiar diante do qual nossos pais diziam: tudo isso um dia será seu. E depois era mesmo, mas então acabava, e aquele vestuário que viera de empréstimo passava a outro e a outro, como numa corrente. As roupas se revestiam de memória.

O que isso tem a ver com palavras? Acho que muita coisa. Palavras e mudas de roupas têm certas semelhanças. Cobrem-nos o corpo, algumas se ajustam melhor a uns que a outros, perdem coloração com o tempo, ficam enterradas sob camadas de outras peças no fundo de algum baú até que alguém as encontre e revele depois de anos e anos. E, finalmente, ganham uso diferente daquele para o qual tinham sido criadas, renascendo noutra época, vivida por outra gente.

Palavras e roupas são primas, estão unidas por um elo que é como um fio qualquer, trançado por mão que não conhecemos, mas que existe, está lá. A roupa se costura com lembranças tanto quanto as palavras com os sentidos, os próprios e os que lhes damos, de modo que cada uma chega carregada e vazia, pronta a se encher com o que tenhamos.

O problema da palavra muito usada é o mesmo da roupa antiga: já não nos serve. Mas o que fazer com elas? Combinar o novo com o velho? Passar adiante? Ou aceitar que, como o tecido, o corpo da palavra também se destrama, revelando as casas alargadas entre os pontos, as linhas frouxas, como a gola dessa camisa que acabo de dobrar e depositar no fundo da gaveta?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...