Pular para o conteúdo principal

Levadas pelo vento


Não sei se vocês sabem, mas o número de pessoas arrastadas pelo vento no último mês mais que dobrou em relação ao mesmo período do ano passado, indo de X para 2,3.X.

O valor, bom que se diga, representa um aumento expressivo mesmo considerando-se o ano de 1994, quando as rajadas abduziram ao menos três pessoas a cada dois dias entre agosto e outubro, totalizando não lembro quantas, mas muita gente.

Uma gente, acrescento, cujo paradeiro em parte foi descoberto dali a semanas, em parte permanece até hoje incógnito, o que sugere que ou esses “levados pelo vento” ainda agora se mantêm em suspenso, planando como folhas secas que jamais encontram pouso ou sacos plásticos largados do 18º andar, ou aterrissaram noutro lugar, noutra terra, noutro tempo, aos quais, suponho, preferiram aos que experimentavam antes de se converterem em pipas humanas.

Há pelo menos dois casos no Ceará. Em Itarema, uma moça de não mais que 30 anos foi abraçada por uma língua insidiosa de vento ao estender no varal um lençol da avó, segundo uma testemunha que narrou o episódio insólito a um destacamento da polícia designado para apurar o sumiço.

Conforme o relato, Dalva pôs-se em luta com os braços de uma algaravia mais corpulenta que bafejou a terra antes de elevar-se súbito, forcejando para manter o pano da avó recém-falecida, mas que, ante a fúria invisível, sucumbiu e entregou-se, sendo então conduzida para muito depois do morro da praia e jamais vista.

O outro fenômeno, de tão misterioso, passou-se em lugar e hora não sabidos, fazendo desaparecer não se sabe se homem ou mulher, apenas que o desenganado ou a desenganada saiu à rua enquanto todos acorriam às suas casas.

Era meio-dia quando se ouviu uma voz indistinta: leva-me, contaram meninotes que brincavam ali perto. Nos dias que se seguiram, não deram pela falta de ninguém, exceto pelos que já eram ausentes, de modo que cada um continuou a cuidar de suas coisas. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d