Nesta quinta-feira, 12 de setembro, se completam cinco anos desde a morte de David Foster Wallace, com quem topei ainda em 2006, dois anos antes que o escritor se suicidasse. A tragédia, aliada à súbita projeção de seu trabalho, já inscrito no cânone literário e tratado como coisa sagrada, acabaria elevando DFW a um pedestal do qual talvez seja difícil depô-lo e ao qual o próprio autor quem sabe preferisse atirar tomates ou preservar à sombra do que tinha a dizer.
Topar com ele, nesse caso, quer dizer apenas que tinha tropeçado em alguém, como muitas vezes havia ocorrido e ainda ocorreria ao longo da vida. Tropecei no cara, e isso mudou muita coisa pra mim.
Assim como topar com Herman Hesse aos 17 e com Rubem Fonseca aos 19 anos, conhecer DFW aos 26 foi um baque nada metafórico. É surrado e impreciso falar em antes e depois, em divisor de águas, em cancelas existenciais além das quais avistamos um passado que já não se parece em mais nada com o que somos agora. Mas foi basicamente o que me aconteceu ao ler o primeiro conto do primeiro livro do escritor que me caiu em mãos: um baque surdo, que se intensificou ao ler o segundo e se avolumou a ponto de explodir ao avançar no terceiro.
Os contos foram: Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial, A morte não é o fim e Para sempre em cima, reunidos em Breves entrevistas com homens hediondos.
A sensação, como em outros momentos, foi de total arrebatamento diante de algo que não se sabia possível, mas era; que não se supunha imaginável, mas tinha sido; que não cogitava como realizável, mas estava ali, a um palmo do nariz, cifrado em letras que iam sendo decodificadas sob completo encanto e tristeza e felicidade e outros sentimentos, tudo misturado e servido ao ritmo da prosa ginasta de DFW. Uma prosa não apenas exibida nos saltos e nas contorções sintáticas, mas cirúrgica no cálculo e precisa no diagnóstico humano de mazelas que ainda estão por ser devidamente escrutinadas.
Não sem razão, alguém diria anos depois: a voz de Wallace é a voz que temos na cabeça, esse sopro não vocalizado que escutamos enquanto esperamos o elevador ou aguardamos um ônibus ou somos o terceiro na fila para renovar a carteira de habilitação ou coisa que o valha. É então que “travamos esse monólogo” do qual muitas vezes é tão difícil nos apartarmos.
Essa voz, sugeria a análise, era consequentemente uma voz elementar, natural, insidiosa, um tipo especial de consciência contemporânea, um juízo ora sarcástico, ora terno, ora irônico, ora resignado. Tal como essa voz pessoal que assume o controle quando nos dedicamos a alguma tarefa banal ou tentamos avaliar todos os riscos envolvidos em uma empreitada moral da qual podemos nos arrepender ou devemos nos arrepender.
Sem grandes custos, a voz de DFW interpunha-se entre a realidade e a nossa cabeça. Criava uma região cinzenta na qual é possível, mediante um procedimento delicado, suspender momentaneamente as ações e sentimentos e valores e subjetividades e condicionantes implicadas em qualquer atividade, seja física ou intelectual, e enxergar cada coisa com uma luz especial e sentir cada coisa como de fato é, ou como normalmente seria, ou como pareceria se tivesse a oportunidade de desempenhar a função que lhe cabe.
Foi essa luzinha especial que vi piscar inúmeras vezes na literatura do homem que se enforcaria na viga de um cômodo de casa enquanto a esposa fazia compras ou estava na aula ou tratava de qualquer outro assunto inadiável, nem lembro direito.
O que prova que a liberdade de ver os outros pode ter um alto custo moral ou ético.
Ou, pelo contrário, não prova nada, exceto que uma depressão duradoura tende a matar quando o paciente acometido da doença não se submete ao regime de medicamentos receitados como indispensáveis e escolhe viver da maneira que for possível viver nos próximos dias.
De um modo ou de outro, provando o que quer que seja, espero que essa vozinha wallaciana acidentada e por vezes cansativa ou reiterativa continue reverberando e produzindo as centelhas de estragos necessários.