Pular para o conteúdo principal

Animal estranho assusta vizinhança



Que divertido é ver a cidade dividida entre o pavor e a revolução da camaradagem, entre as regionais II e IV, entre o Cocó e a Praia de Iracema, entre a sandália rasteira e a Crocs, entre o multiplex e o cineclubismo, entre a macaxeira e a batata frita, entre a mão vermelha e Brecht.

Por muito tempo o vermelho foi símbolo do comunismo. Designava, genericamente, movimentos de esquerda. Agendinhas vendidas nos campi dos centros de humanidades eram vermelhas. Camisas estampando o rosto de Guevara eram vermelhas. Bottons de campanhas para a direção de centros acadêmicos eram vermelhos. As ideologias mudaram, a esquerda rachou, voltou a rachar, cada pequeno pedaço se dividiu em dois ou três, mas a cor do protesto sempre foi a mesma. 

Agora o vermelho é adotado também pelo PIB engajado. Com um sentido diverso, está na mão espalmada, estandarte do bloco cuja madrinha bem poderia ser a Regina Duarte da propaganda do Serra: eu tenho medo. A mensagem é falsamente direta: basta de violência urbana. Embute, porém, um sentimento de fácil reconhecimento pela fração que se posiciona acima da carne seca quando o assunto é renda per capita.  

Enquanto a violência respeitava limites, circunscrita à periferia e, quando muito, à classe média baixa, estava tudo bem, mas esses tempos passaram. A merda chegou na porta. A coisa não pode ficar assim. 

Depois do shopping, se o trânsito maluco desta metrópole permitir, marcharei rumo ao Abolição. Só espero que a área não tenha se transformado de vez em parque recreativo do MST. 

Os partidários da mãozinha querem mais segurança na cidade. Prometem manifestações, organizam-se, articulam-se, lançam campanhas, cobram ações imediatas dos governos. Na internet, relatam casos de roubo, morte, sequestro. Fazem jus ao pavor que dá nome ao movimento. Estava caminhando na Dom Luís quando fui surpreendido por um bandido. Voltava duma festa em Aquiraz e tive o carro levado por ladrões. Reunião da família no Porto das Dunas foi interrompida por tiros próximos. 

A bandidagem faz blitze randômicas no mapa de Fortaleza. A geografia do crime se redesenhou. Roubo de veículos: periferia. Aldeota: sequestro. Assalto a banco: interior do Estado - na capital, a prática limita-se aos bairros com boa oferta de rotas de fuga.  

Os apavorados logo se convertem em piada. Viram caricatura nas mãos dos indignados por ofício, que ainda não sabem se estão incomodados porque finalmente a turma do medo resolveu sair da toca e mostrar a cara ou se, por trás desse incômodo, há algum tipo de discordância mais elementar, real, de fundo teórico, de método, de ideologia ou tudo isso junto. Uma divergência de natureza irreconciliável, enfim. 

É uma dúvida atroz desgostar de algo mas não entender exatamente por quê, e desse modo se surpreendem compartilhando desabafos que traduzem à perfeição aquilo que imaginavam sentir, dando vivas por finalmente haver encontrado numa frase, poema ou mesmo numa piada algo que define tudo em poucas palavras. 

Fato é que, sendo uma coisa ou outra, cerram fogo contra os apavorados, que devolvem a beligerância em doses cada vez maiores. 

Bando de arruaceiros, atacam uns. Desideologizados, retrucam outros. É uma briga retórica, mas principalmente de símbolos. Uma disputa pelo capital da mudança, pela justeza das propostas, por um lugar na proa do discurso contra-hegemônico, que, historicamente, nunca foi tão espaçoso. 

Minha bandeira é melhor que a sua. Não é, não. A minha defende os interesses da maioria. Que maioria? A maioria, ora. Pergunta mais estúpida. Nós queremos a verdadeira mudança; vocês, apenas a manutenção do status quo. Qual é a verdadeira mudança? A que se faz com justiça social. Nós também queremos justiça social, mas, antes, não custa nada prender uns bandidos e reforçar o efetivo policial, tornar as penas mais rigorosas e reduzir a maioridade. É básico. Não dá pra esperar. Essa agenda é elitista. Nós sabemos disso, mas precisamos dar o primeiro passo. É urgente. Os governantes precisam entender que a merda chegou na porta.

Assim, brechtianos e adeptos da mãozinha Pomarola se engalfinham. Primeiro vem justiça social e depois segurança ou o contrário, primeiro segurança e depois justiça social? As duas coisas ao mesmo tempo? Nem tanto uma, nem tanto outra? É possível executar uma política de segurança justa socialmente? Tem que haver repressão ou a palavra não combina com justiça social?   

Há mais variáveis do que a equação suporta. Os ataques e contra-ataques se sucedem; golpes e contragolpes, ideologias e contraideologias, pancadas de lá e de cá. Nesse MMA dos valores, ainda mais violento que o dos ringues, nenhuma vantagem é suficiente. 

Toda nuance será castigada.

A mãozinha é despudorada ao defender uma agenda diluída, pouco propositiva, mas fundamentalmente de classe, e isso não se perdoa. 

Os brechtianos creem-se portadores de uma verdade capaz de unir todos os povos do mundo. Nas redes sociais, com uma desenvoltura de fazer inveja à pastoral da terra, falam em nome dos pobres, dos desassistidos, dos carentes, dos despossuídos ou seja lá que outra classificação os novos ventos semânticos tenham resolvido dar a quem só se fode na vida. 

Que bonito ver a cidade dividida entre o pavor e o pavão. 

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d