Pular para o conteúdo principal

O Instagram nunca mente

Já me perguntaram muitas vezes se vou viajar. É sempre assim. Afinal, estou de férias, e o que faz uma pessoa de férias? Viaja? Fica em casa? Joga videogame? Alimenta as plantas? Dorme? Toma cerveja? Tranca-se no banheiro com revistas pornográficas? Compra pilhas novas para o controle remoto da TV? Relê Asterios Polyp pela quarta vez? Ajuda as velhinhas a fazer alongamento antes da aula de tai chi chuan no Parque Rio Branco?

Não, uma pessoa de férias trata imediatamente de sair de férias, e sair de férias quer dizer viajar, estar em trânsito, fotografar planícies diferentes, ver coisas diferentes, pessoas diferentes, provar sabores diferentes. Viajar é demonstrar empírica e pictoricamente que passou e comeu e viu cada uma das texturas mencionadas.

Cada check in valeu a pena, cada luz, cada recorte, cada sorriso. De tão vívidas, as cores parecem mentirosas, mas é tudo de verdade, posso afiançar: o sol se punha exatamente assim, o casal abraçava-se como num filme do Woody Allen, as copas das árvores dançavam tango ao sabor de um vento mediterrâneo levemente salpicado de felicidade.

Mais que documentar, viajar é provar que viajou. É validar a experiência, partilhando-a. Partilhar é o verbo da moda. Se viajo, mas não tenho meios de compartir minha venturosa jornada por destinos nunca d’antes visitados, ninguém acreditará em mim – passado algum tempo, nem eu mesmo acreditarei.

Aconteceu comigo depois de umas férias em Guaramiranga. Sem registros fotográficos, ficaram apenas a memória das estripulias na serra, mas quem garante que se trata de realidade e não de sonho?

Estive lá mesmo ou inventei tudo? Mamãe diz que não recorda de boa parte dos episódios que relato. Os irmãos eram ainda muito pequenos. Será que minto? Será que, sem querer, os mecanismos da mnemônica realçam cores e efeitos a fim de criar não uma nova memória, mas uma memória melhorada? Se sim, com que intenção promove essa burla na experiência? Para me tornar mais feliz? Para que sinta, de alguma maneira, que cada vivência foi única, inigualável em sua dose de felicidade?

A memória é nosso próprio Instagram: ególatra, volúvel, imperfeita, ilusória. Essa afirmação embute uma pergunta: o que falseia mais a realidade, o que evocamos por meio da memória ou o que fulgura através dos mecanismos digitais? Os sentidos se enganam? A imagem nunca mente?

Do mesmo modo, se não apresento atestado de que usufruí as férias, as lembranças estarão confinadas ao oco da cabeça de um viajante unitário cuja máquina de recordar é falha. E isso talvez seja suficiente. Talvez nunca seja. A visão da chapada, o passeio na avenida feérica, a caminhada no litoral exótico, a noite agasalhada no frio gaúcho ao lado da pessoa amada, a bebedeira na zona boêmia do Rio, a deslumbrante exposição na galeria de São Paulo.

É tentador convencer-se de que não é seguro manter essa profusão de símbolos e experiências sob a guarda única do cérebro. É preciso auxiliá-lo, alargá-lo, expandi-lo. Uma ideia enganosa. Negar que os sentidos humanos são ainda o que há de melhor quando necessitamos rememorar: eis um engano maior ainda. A maior ficção é a que se traveste de realidade, a que se pretende genuína, autêntica, singular.

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas