Auditório da livraria, Fortaleza, sábado, 17 horas. De pé no centro do palco, o palhaço prepara-se para a árdua tarefa de entreter, por meia hora, cerca de 15 crianças cujas baterias estão com todos os bastõezinhos carregados. Segundo amigos que tiveram filhos recentemente, esses tablets humanoides têm autonomia de 24 horas e só raramente emperram. Pensem nisso com seriedade antes de tomar qualquer decisão.
O palhaço não é um tipo imponente. Magricela, veste jaquetinha feita com retalhos de pano coloridos, calça branca de tecido cru e sandálias de couro. A primeira coisa que me vem à cabeça quando o vejo prestes a enfrentar aquela horda de pequenos egos inflamados dispostos em semicírculo é: não queria ser ele. O rapaz não tem mais que um metro e sessenta e cinco de altura. É fácil imaginá-lo num desses shows na Praça Verde do Dragão do Mar, sacudindo-se ao som de uma banda de pífanos.
Sorriso engatilhado, pandeiro nas mãos, tamborete sob o pé, o palhaço avisa: se quiserem, as crianças também poderão acompanhar a história sentadas no assoalho de madeira do palco, e é para lá que pais e mães e babás acorrem feito búfalos repentinamente assustados pela aproximação de leões. Querem a melhor visão para seus pequenos.
Marcho com minha princesinha de 6 anos. Dou alguns passos, ergo-a nos braços e a deposito com delicadeza ao lado de um garoto de aspecto inofensivo. Digo que estarei perto e faço menção de ir embora. Ela devolve um risinho maroto, do tipo: “cara, isso aqui é seguro”? Para mim, Antonia é uma espécie delicada de ninho repleto de passarinhos.
Deixo-a ali, pensando seus próprios pensamentos. Fico satisfeito que ela tenha superado tão rápido o episódio desagradável do chocolate. Francamente, admiro a maturidade demonstrada ao sugerir que não jogássemos o doce fora só porque alguém proibira a entrada de alimentos no auditório, mas, ainda que lambuzasse todo o conteúdo da bolsa, o guardássemos para depois. Por trás daquele argumento egoísta, refleti em silêncio, havia um convite expresso à insubordinação. Voto vencido, Antonia teve de se contentar em dar mais uma mordida na guloseima e capitular ante a opressão da normatividade.
Antes de me encaminhar às poltronas, onde outros adultos aguardavam o início da historinha tamborilando com os dedos em seus artefatos touchscreen, assumi um arzinho grave. Tomei uma precaução que julgo fundamental e a recomendo a todos. Vejam bem: Antonia é frágil, lembra um saco de pipoca pela metade, e eu tenho todo o cuidado do mundo quando o assunto é sua integridade física. Cuidado extremo, diria.
Instintivamente, como se procurasse ervas daninhas num jardim ou raposas num galinheiro, tentei rastrear meninos brigões na audiência que se formara em U ao redor do palhaço. Esses tipinhos explosivos, valentões, que, mesmo bem novos, azunham, mordem, beliscam e puxam os cabelos dos demais sem qualquer cerimônia. Pequenos Hunos e Stalins em segredo sob o manto cor de rosa da inocência.
Cumprida a inspeção, detecto apenas um exemplar irrequieto que, ao longo da próxima meia hora, será duramente referido em minhas anotações mentais como o “Menino Chato pra Caralho”. Sendo assim, enquanto o Menino Chato pra Caralho se agita como uma formiga de roça recém-aprisionada em uma lata de óleo, arrasto Antonia para o lado oposto. Apenas lá é seguro, convenço-me.
Pronto, todos acomodados. Era uma vez...
A historinha é curta e tem final abrupto. Fala de uma menina que vivia no fundo de um baú miniaturizado. Não à toa, a garotinha, que, por razões que não ficaram claras para mim, é uma princesa, chama-se Polegarzinho e por pouco não se casa com o filho de um sapo malvado. Sortuda, Polegarzinho consegue fugir em direção a seu reino, onde todos a aguardam para que a vida volte a transcorrer em paz.
Inexplicavelmente, Antonia fez pouco caso desse conto de fadas. Imagino que o tenha achado pouco fantasioso ou muito breve ou as duas coisas. A situação só piorou quando o palhaço virou-se para a plateia e convidou as crianças que gostariam de ver o baú a formar uma fila no palco.
Meninas e meninos enfileirados, euforia, mãos que se abanam e pés desassossegados. Mais por comodismo que por interesse, Antonia entra na onda. Por certo quer saber do que se trata a cartada final do contador de causos sem graça.
Uma a uma, as crianças espiam o interior do baú. A reação é diversa. Uma garotinha jura ter visto Polegarzinho estirada numa cama de esquilos. Outra dá de ombros, mas logo é convencida de que tinha presenciado uma revelação especial.
É a vez de Antonia, que se curva levemente sobre a caixinha de madeira. A caixinha é aberta aos poucos. Ao escancará-la, o palhaço dirige o melhor sorriso que tem à menininha bastante séria postada a sua frente. Fim do espetáculo.
“Não tem nada lá dentro”, foi o que Antonia disse.