
De repente sorriso na esquina da Heráclito Graça com outra rua que não lembro, mas lembro do sorriso e do que o antecedeu, olhando-a na cadeira de rodas, num canto da ampla área de recreação do condomínio de apartamentos antigos, cada morador mais velho que os baobás todos juntos.
Era uma senhora, é uma senhora, sobre isso não resta dúvida. Anda na cadeira de rodas, mas estava parada, e sorria esticando o olhar em direção ao outro lado da avenida, imaginei prontamente.
Pretende quem sabe tentar alcançar aquele tempo antigo, mocidade, normalistas retornando da escola, namoricos, mãos que se esfregam à sorte dos movimentos, em seguida casamento, filhos, a viuvez repentina, a vida antes e depois do acidente?
Todavia pode não ser, não ter sido, nem vir a ser nada daquilo.
E fomos em frente, sempre teorizando acerca, sempre conjecturando um mil e um modos para a mulher na cadeira de rodas que fixara no rosto o sorriso e dele não se desgarrava nem por morte ou doença e somente à nossa passagem pela calçada o havia encolhido bem pouco, mas bem pouquinho mesmo, talvez por vergonha, talvez por não querer despertar inveja.
Pobrezinha, pobrezinha, foi o que cheguei a pensar enquanto caminhávamos, pobrezinha, repetia, revolvendo num final de sábado as memórias e, surpresa por qualquer razão, reatando nós do passado com presente, atando-os num sorriso besta visto por mais ninguém senão distraídos.
De modo algum poderia estar mais enganado, e o sorriso, longe de destinado à ventura de uma lembrança vaporosa, era um presente.
Um presente que aquela mulher na cadeira de rodas endereçava ao homem corpulento, metido em trajes de gari, que passava exatamente do outro lado da rua e cuja boca desenhava também um riso agradecido.
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