Não costumo falar de livros por cá, mas vamos em frente.
NA MADRUGADA DE ONTEM pra hoje, terminei de ler Ponto ômega, de Don DeLillo, um livro magérrimo, 102 páginas, cujo efeito é inversamente proporcional a sua envergadura e peso, o que não quer dizer muita coisa. Também não pode ser descartado como gordura.
Atravessar um deserto – não importa qual, para efeito de ligeireza na escrita me limito às referências básicas da história, seguidas de uma ou outra análise disparatada - na companhia de um cineasta que pretende a todo custo produzir um filme centrado na figura de um renomado estrategista de guerra. Um filósofo da guerra, talvez. Eis a sacada do romance, que foi lançado recentemente, ainda neste ano, eu garanto.
ESSE CONSELHEIRO PARTICIPOU dos planos e reflexões e desculpas que conduziram os Estados Unidos à invasão do Iraque. Foi logo depois do 11 de setembro, certo? Lembrem-se das armas de destruição em massa jamais encontradas sob as barbas de Hussein, nem em qualquer outra parte de Bagdá, e terão uma vaga noção do que pode ter ocorrido naquelas salas arejadas do Pentágono e da Casa Branca.
O conselheiro, que se chama Richard Elster, passa quase sempre sozinho temporadas longuíssimas numa casa perdida no meio do deserto, que fica na Califórnia, de modo que a paisagem árida, as montanhas, as vastidões a perder de vista, o clima, o calor, o tempo dilatado, o sentimento de que tudo se esvai lentamente, a falta de parâmetros, a elasticidade do pensamento, a consciência cósmica segundo a qual não passamos de grãos de poeira navegando sem rumo – tudo isso está presente de alguma maneira em Ponto ômega.
A DISCUSSÃO É UM BOCADO densa, parece te sido pensada para ser, pelo menos. Após recusar sistematicamente os convites para que protagonizasse o filme de Jim Finley (o cineasta), Elster chama-o até a casa no deserto. Finley vai ficando, ficando, ficando... O livro transcorre entre as conversas dos dois, pontuadas por goles de uísque e vodca, e a presença da filha de Elster, que se torna rapidamente o terceiro vértice de um estranho triângulo.
ANTES DISSO, PORÉM, somos empurrados para a sala escura de um museu em Nova York onde é projetado Psicose, de Hitchcock, a um ritmo lentíssimo: dois quadros por segundo, creio. Vistoriamos a sala, testemunhamos a fragmentação do discurso cinematográfico e atestamos – o narrador nos leva a essa conclusão - o incômodo provocado pela perda radical de sentido da fita.
A representação parte-se em duas ou três ou em quantas queiram os leitores. O cinema é realidade? Só até alguém resolver brecar a velocidade de transmissão dos quadros. Depois disso, torna-se irreal. De acordo com um dos personagens da trama, porém, essa irrealidade é o cinema.
O DESERTO É REAL? Assim como Psicose decompõe-se mediante expediente mecânico dos mais ordinários, Finley percebe que, entre rochas arenosas, sulcadas durante intempéries que se sucederam por anos e anos, produzindo marcas, abrindo e fechando rotas, as fronteiras e os contornos do indivíduo viram pó. Para saber quem é, ele pronuncia o próprio nome.
Um mergulho na consciência, nos dois casos. A sala escura do cinema que retroage e o deserto incandescente equiparam-se em capacidade, força e funcionalidade. O ponto ômega, esse encontro agudo da consciência consigo, aceitemos essa definição mequetrefe, é o resultado final tanto de um quanto de outro processo.
O leitor pode perguntar: sim, e daí? Bom, admito: ainda estou pensando sobre tudo isso.
Comentários