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Eu sou irônico


NOTA: o texto que segue foi orgulhosamente publicado na magazine Aerolândia.

Dante Ferboa, o ensaísta cascatinha

Não sei exatamente que parcela de culpa podem ter Holden Caufield, Homer Simpson, Ross Geller e Sheldon Cooper. Tampouco posso acreditar que houve um dia na história em que não tenhamos recorrido às ferramentas de que falarei como catarse vaidosa capaz de desarmar um interlocutor indesejável apenas esgrimindo-se um punhado de palavras de gume afiado. De todo modo, desconsiderando os efeitos positivos facilmente identificáveis, me pergunto com freqüência quando começamos a acreditar que a ironia e o sarcasmo são recursos infalíveis, a serem usados a cada seqüência de quatro frases como se fossem obrigatórios na vida do homem e da mulher modernos, urbanos, heterossexuais, brancos e católicos.

E não encontro resposta. Duas semanas atrás, minha sobrinha de seis anos disse a sua mamãe que ela, minha irmã, precisaria dormir mais duas horas além do habitual caso realmente quisesse perder aquele aspecto de maracujá apodrecido que vinha cultivando desde que o casamento tinha naufragado. Disse isso na hora do almoço, e todos suspenderam seus garfos e olharam espantados para a anã de jardim fixa em posição de lótus numa cadeira de palhinha de frente para um prato de frango e arroz e um copo de suco de goiaba.

Duda continuou mastigando. De repente, me veio à cabeça uma miríade de personagens femininas cujo talento estaria infinitamente abaixo daquela representação ingênua mas eficiente de ironia infantil destilada em situação de comédia banal: um domingo, família reunida, nervos à flor da pele, e, no instante em que a fragilidade das psicoses individuais fica à mostra, num desmantelo provocado sabe-se lá por quê ou quem, o arranjo malogrado de vocábulos irrompe feito catapora no tecido social. O equilíbrio dos adultos cínicos vai para o beleléu. Imaginem o chute de Anderson Silva em Vitor Belfort. Duda fez isso. KO.

“Tem algo errado com o mundo” foi o que considerei depois, já bastante conformado. Não sei se é a oferta inflacionada de sitcons televisivos, letras de música oscilantes entre o melancólico e o depressivo (o que incide diretamente sobre a maneira de enxergar o outro) ou se seriam os efeitos tardios da queda do muro de Berlim... Duvido. A situação na Líbia também é recente, prefiro acreditar que é South Park em demasia. Porém, a despeito de todos os fatores listados, não me espantaria se alguém garantisse: a culpa é integralmente do Woody Allen, esse general da piada inteligente.

Porque Machado está distante e a influência do escritor sobre os jovens não é metade da verificada por J. K. Rowling no mesmo segmento. Lima Barreto é pouco lido, Stanislaw não passa de nebulosa, O Pasquim deixou tietes, o KibeLoco é uma pasteurizada compilação de escatologias inconseqüentes. Penso também na geração que envelheceu assistindo às desgraças rotineiras do coiote e hoje dedica parte do seu tempo a programas de stand up comedy. É um caldo viscoso de referências cuja síntese aponta sem dúvida para o escárnio como ingrediente primordial nas relações interpessoais e para o disparate certeiro como prática esportiva, e ninguém vê nisso um sinal evidente de que os tempos são degradantes. Os piores já vividos, arriscaria.

O fato é que as coisas parecem sair dos trilhos, e as redes sociais estão aí para provar que virou lugar comum dizer que o reino encantado da virtualidade potencializa enormemente o talento natural que temos para a bravata, o chiste, a ironia e o sarcasmo. Aliás, não vejo outra finalidade nelas senão permitir que, ao acordar de manhã ou comer uma maçã de madrugada, demos bom dia ou boa noite com um risinho obtuso estampado no rosto. Aliás, esse é o enquadramento predileto das meninas nas fotos, um biquinho de enfado diante da... Diante de sabe Deus o quê.

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