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NO COUNTRY FOR OLD BOYS

Vou dizer rapidamente o que tenho a dizer e depois dormir um pouco antes da ceia natalina. Afinal, nem tenho mais o que esconder após ter deixado escapar um arroto cujas ondulações sonoras – e odoríficas? – alcançaram a visita que estava na sala conversando com os de casa. Em seguida, ela (não a visita, mas “ela”) perguntou: “Tu QUER ME MATAR DE VERGONHA?”

“NÃO”, respondi. Foi a Coca-Cola. Foi sem querer mesmo. Espero que não tenham uma má impressão de mim. Sou bem-educado. Sempre libero o assento da frente no ônibus quando algum velhinho alquebrado rasteja até e, sem forças, suplica estendendo um braço cheio de veias azuis saltando como pipocas numa panela.

Mas o que tinha mesmo a dizer a menos de 12 horas do Natal? Nada. Não tinha ontem. Continuo não tendo hoje. Apenas que o 24 de dezembro é um dia que mexe com as pessoas. Brigas, bebedeiras, manifestações populares.

Em frente ao Pão de Açúcar, um grupo rumoroso de pessoas vindas dos bairros mais pobres dessa área – Antônio Bezerra, Rodolfo Teófilo etc. – impedia a entrada de quem quer que fosse. Vestidos com camisetas vermelhas do Movimento de Vilas e Favelas – não lembro direito se era esse ou outro – com apoio da Secretaria de Saúde do Estado, os manifestantes carregavam faixas e cartazes.

Um deles dizia: “Dá pão a quem tem fome. Assinado: Jesus Cristo”. JC já teve mais influência. Hoje, invocar seu nome desperta apenas algumas caretas contrafeitas. Como as que fazemos quando os meninos sobem nos ônibus para nos vender canetas. Sim, os ex-dependentes químicos que vêm da Bahia e do Recife e se recuperam na Casa Manassés.

Um parêntese: a última caneta que comprei era de tecnologia japonesa. Sua tinta, azul, brilhava e durava mais que qualquer outra caneta. Incrível...

Voltando à vaca fria. A polícia chegou. Houve algum tumulto. Um PM abriu caminho entre os manifestantes usando os cotovelos como fórceps. Um rapaz cuja educação deve ser posta em xeque. Depois, os líderes do motim – meia dúzia de militantes do Partido Comunista Revolucionário, os mesmos que, há seis anos, via desfilarem as bandeiras de sempre, dizendo as besteiras de sempre, na faculdade de Letras e depois na de Jornalismo – foram convidados para ter uma conversa franca com o oficial da PM.

Assisti a tudo isso na área de estacionamento do supermercado. Lá se amontoavam as pessoas que tinham vindo de longe para ganhar uma cesta básica ou, no caso das crianças, um brinquedo. Uma mãe me disse que se soubesse que ia ser daquele jeito, não teria vindo. Ela havia levado a filha, uma menina de uns seis anos. A mãe disse que a filha pensava que “era só chegar e pegar”. E o que ela queria?

“Um brinquedo”, respondeu a menina.

Depois da conversa, os manifestantes liberaram a entrada do Pão de Açúcar. Lá fomos nós, felizes da vida, fazer nossas compras. Ao lado da banca de legumes, um homem comentou que todos ali haviam sido manipulados, que os líderes tinham até dinheiro na carteira.

Outro, que aquilo era pouca vergonha. Uma senhora até aplaudiu a polícia quando ela desceu do carro e saiu abrindo caminho entre mulheres, homens e crianças como um sertanejo que pica a mata.

Esse é bem o espírito de Natal. Depois dizem que Saramago não tem razão, que é melhor acreditarmos que tudo tem jeito. Mentira: nada tem jeito. Vai ser sempre assim. Cada um por si.

A MUDANÇA DE SEXO

Uma novidade: o gato, que tinha nome e tudo – James – foi desmascarado. Na verdade, trata-se duma gata. Porque lhe faltam bolas e pinto. E, faltamente, alguma masculinidade.

Melhor assim. Seu nome? Kate.

O MELHOR FILME DO ANO

E o melhor filme que vi este ano foi “Blade Runner”. Vi ontem, de madrugada. Quer dizer, hoje, entre uma e três da manhã. Sozinho na sala, de frente para o PC, o rosto clareado aqui e ali por faróis disparados dos carros que sobrevoavam uma Los Angeles soturna e dominada por pequenos comerciantes nipônicos.

Quase choro. O final desse filme é lindamente sombrio. Ele é todo lindo. Menos a pombinha branca que o líder NEXUS 6 solta antes de morrer. Essa não tem a menor graça. Parece coisa do movimento VIVA RIO.

E o que dizer do romance entre Deckard e Racheal? Magnífico. Depois comento mais. Tinha me programado para rever “Dogville” neste Natal. Não vai dar certo. Estou sem tempo e tenho que ler “A guerra do futebol”, coletânea de reportagens escritas por um polonês. Sim, para sábado.

Mais alguma coisa antes do fim? Não sei. Se tenho, esqueci. Agora são 14h50. Estou saindo. Talvez volte, talvez não volte. De todo modo, amanhã é quinta-feira, 25, e tenho de trabalhar.

Era isso? Talvez acabe escrevendo alguma coisa antes do fim. COBERTURA ESPECIAL DIRETO DA CEIA DE NATAL DOS ARAÚJO.

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