Pular para o conteúdo principal

Treinar ou malhar?

 

Em que momento passamos a substituir malhar pelo odioso treinar? Uso a terceira pessoa do plural, bom que se diga, de modo retórico, uma vez que, ao menos agora, não estou treinando, tampouco malhando. Mas, tenho de admitir, a questão me interessa no que tem de reveladora sobre o nosso tempo. Explico.

Lembro quando malhar desbancou uma construção ainda mais antiga: fazer ginástica. Foi lá pelos 1990, época em que os espaços de academia se popularizaram e chegaram aos bairros, primeiro lenta, depois avassaladoramente, até o ponto em que havia tantos equipamentos do tipo quanto padarias chamadas Dois irmãos e churrascarias denominadas Esquina do Baião.

Não demorou, e malhar se impôs como nova gramática do corpo, estabelecendo uma fronteira intergeracional que instituía uma bipolaridade no mundo mesmo depois da queda do muro de Berlim. Os mais velhos se referiam ao exercício físico de uma maneira, enquanto os mais jovens de outra, e esses polos jamais se misturavam. Pelo contrário: travavam entre si uma guerra fria.

Malhar ganhou de vez o status de quintessência da jovialidade e da modernidade com o lançamento da série global “Malhação”, cujas desventuras atlético-amorosas se passavam exatamente numa academia, onde os personagens interagiam mais longamente do que na escola – até que a própria academia virou a escola.

Salto para o final da segunda década dos anos 2000, quando malhar já não goza de tanto prestígio. É até cafona, passadiço, mais ou menos como ouvir Legião Urbana em uma JBL na praia tomando Brahma.

Em seu lugar, altissonante e imperativo, eis que surge o verbo “treinar”, que, mais do que seus predecessores, escancara uma dimensão de competição e performance, não militar ou olímpica, como o termo faz crer, mas social.

Quando se treina, não se está ali meramente por causa da saúde ou do bem-estar orgânico (mente sã, corpo são etc.), mas para se aprimorar fisicamente, registrando metas (monitoradas por aplicativos) e colhendo seus resultados dentro de um prazo fixado em tabela parametrizada.

Ora, quem sai de casa para treinar não está para brincadeira. Na minha cabeça, penso logo em alguém imbuído do mesmo espírito de um Rocky Balboa às vésperas de uma luta, ou num atleta prestes a quebrar um recorde mantido por uma máquina humana do leste europeu cuja disposição para a vitória foi moldada aos dois anos de idade em temperaturas abaixo de zero.

É isso tudo que imagino, por exemplo, quando um amigo menciona, em tom exageradamente sério, que o treino foi duro hoje de manhã. Que treino, camarada?

Nessas horas, a imagem que me ocorre nunca é a de alguém que vai sentar num banco acolchoado sob uma luz instagramável e pegar uns halteres de 15 kg, enquanto mira um espelho de parede inteira em frente ao qual mais tarde irá fazer uma selfie retesando os músculos e postá-la nos stories.

E, no entanto, contrariamente a essa militarização disciplinada de “shapes” prontos ao combate, treinar não quer dizer nada do que o seu emprego atual promete.

Afinal, quem vai a uma academia hoje não está lá para fazer algo substancialmente tão diferente do que a sua mãe fazia de collant azul e vermelho nas aulas de aeróbica, levantando uma perna e depois a outra, ao som do A-ha ou dos Bee Gees.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d