Pular para o conteúdo principal

Lousa mágica

 

Apenas hoje entendo o apelo da lousa mágica, a ideia de uma superfície que opere o apagamento quase ao mesmo tempo do registro, ou seja, um escrever-apagar que são parte do mesmo movimento, composição do mesmo gesto.

Mas quando criança era apenas o fabuloso contido na brincadeira que interessava. De repente, o escrito já passado, e nada do que se dissera ali existia mais, tudo presente tornado pretérito.

As lousas mágicas, porém, tinham um defeito: quebravam-se muito cedo, não eram duráveis, tão logo se começasse a usá-las, mostravam-se sensíveis a qualquer golpe mais brusco, de modo que, no dia a dia, algo sempre as inutilizava.

Então era preciso comprar outra e mais outra, como se o custo da mágica fosse a consumição da matéria, não havendo possibilidade de conciliar o concreto e o sonho. A lousa mágica era uma ficção, nem se prestava como lousa, posto que nela não se escrevia de caneta comum ou com giz, tampouco como mágica, uma vez que seu truque era facilmente desvendável.

Apenas como o encontro de dois mundos ainda tinha serventia, mantinha-se encantada por algumas horas, depois das quais era sempre largada de lado, esquecida, como é ao cabo de tudo o futuro de qualquer brinquedo. Que sua aura se desgaste e desapareça, desmaterializada, era esse o horizonte em direção ao qual a lousa se encaminhava.

No ano seguinte, porém, quando o vendedor passava na porta da escola e oferecia o objeto de sala em sala, todos pedíamos aos pais que comprassem a lousa mágica. E a gente se punha de novo a adivinhar as letras uns dos outros, a escrever declarações e depois apagar.

O instrumento foi, a sua maneira, nossa primeira rede social, uma plataforma de expressão adequada aos tempos e na qual se depositavam, em caráter provisório, os desejos de crianças.

Como muitos eram de natureza proibida, porque tratavam de paixões recém-despertas, namoricos de recreio e coisas afins, rapidamente escrevíamos e apagávamos recados endereçados a alguém sentado duas cadeiras na fileira da esquerda. Ou isso, ou então xingávamos a mãe de um valentão ou de um desafeto de outra série.

A lousa tinha essa dupla destinação, ambas constituídas em torno do afeto. Era paixão pela ideia de que sua existência carregasse algo de revogável – a magia era a potência de retroceder e apagar o que se havia dito e feito saber provisoriamente, uma súbita revelação depois desfeita.

A lousa mágica era, no fundo, um editor de textos, um experimento infantil que nos dava mais poder do que supúnhamos. Tinha, nesse sentido, vizinhança com o carro que era uma máquina do tempo, deslocando-se através das eras, das décadas, dos anos, como no filme da década de 80.

Um dia, intrigado, resolvi desvendar o mistério que havia por trás dos mecanismos da lousa, porque certamente algo explicaria seu funcionamento, as maneiras como se davam aquelas peripécias diante das quais a gente ainda se surpreendia.

Sem que a mãe soubesse, quebrei o artefato em pedacinhos à espera de encontrar alguma substância mágica, o segredo finalmente exibido, o recado contado, mas só havia plástico e tinta, nada mais.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d