A Estação – inicial maiúscula – é o novo centro do olhar e do fluxo cearenses, um espaço de alta frequentação e performance de classe num estado habituado a marcações de origem muito evidentes. Terra de cercadinhos, de puxadinhos VIP, de acessos restritos, de elevadores de serviço etc.
Lugar de letrados, de ilustrados, de desfile dos signos de pertencimento e de distinção, de filiações e adesões, altamente carregado de um sentido de visibilidade, tanto por sua finalidade arquitetônica – é amplo e feito para isso, ou seja, para a exposição de obras de arte e também de seu público – quanto pela natureza das relações que se estabelecem ali.
Mas nisso não há qualquer novidade, todo equipamento cultural, por mais democrático que se pretenda, tem sempre em sua entrada um guichê de cobrança de pedágio simbólico sem o qual os consumidores/cidadãos não têm acesso às experiências projetadas. A roupa, o público, a segurança, tudo seleciona antes de qualquer seleção, tudo barra antes de qualquer obstáculo físico efetivo.
A Estação é também o novo Dragão do Mar, ela o substitui como ponto nodal de encontros, como uma esquina de cruzamentos – não mais a cúpula do planetário e o eco de vozes e o xadrez do piso –, mas as dimensões em aberto da construção histórica, um posto avançado da cultura, espécie de enclave que cria uma cisão naquele quadrante degradado sem, contudo, incorporá-lo.
Ambos, a Estação e o Dragão, demarcam o que é a paisagem cultural e política local, quase sempre instituída numa clivagem do velho e do novo, do antigo e do atual, do moderno e do ultrapassado, nesse jogo de gato e rato – ou de rasura e apagamento, matizado pela tensão entre personalismo e interesse coletivo.
Nessa busca da gestão como captura do olhar, é preciso estabelecer uma marca, consideram os governantes, às vezes bem-intencionados, cercados de bons conselheiros, certos de que fazem o melhor para o bem comum. Uma marca, porém, já embute estratégias de diferenciação, de corte, de limites entre um antes e um depois, uma política e, nessa política, as escolhas feitas, que são obviamente escolhas políticas ainda que se trate de cultura.
O Dragão, não custa lembrar, é representativo desse Ceará que se quis moderno e modernizante, que se autoinventava ao custo também de saltos culturais, de que o equipamento era tradução – o grande Dragão do Mar como centro cultural, a ideia em si de um centro ao qual se vai determinando uma periferia cultural da qual se parte e para onde se volta depois, na institucionalização dos abismos.
Esse Dragão envelheceu como símbolo e como legenda de uma nova era, que não se via na geografia do Siará e ainda buscava a sua marca, encontrada finalmente na Estação das Artes. Não é casual, imagino, que a passagem do Dragão à Estação consolide um deslocamento de poder e se faça de maneira tão visível, com o resultado desse quase abandono de um passado (político e cultural) se expressando na própria estrutura do que antes era o orgulho de um Ceará de Luz.
O velho Dragão hoje carece de reforma física, de atenção, de uma intervenção que o reconecte com a cidade e a cidade com ele.
A Estação, desse modo, demarca não apenas o esvaziamento do Dragão como assinatura política de um novo governo, mas como espaço de criação e como elemento cujo propósito também abarcava essa utopia da cultura como catalisador da mudança social do meio.
Na Estação essa ideia é totalmente ausente, não há qualquer tentativa, ao menos não à primeira vista, da constituição de um elo com uma área que lhe faz vizinhança, com o seu entorno. É como uma nave espacial recém-pousada vinda sabe-se lá de onde.
O ideal – e o ideal nem sempre é o ideal, como já pregava aquela revista de sucesso – seria que Estação e Dragão instituíssem entre si canais de trânsito que permitissem a seus públicos uma mobilidade de leste a oeste e de oeste a leste, multidirecional. Que a paisagem cultural fosse policêntrica, mais abrangente e, de certa maneira, menos cartografada e disciplinada. Que a Estação fosse menos estacionária e o Dragão, menos domesticado.
Comentários