A gente se desacostumou com o ruído depois de dois anos de confinamento. Tudo parece estridência, todo lugar excessivamente barulhento, seja o som das caixas, seja o volume de uma conversa. Vídeos pipocando com carga sonora máxima nas telas de celular, projeções em jato de imagens que clareiam qualquer ambiente.
Me pergunto se o alarido quase-histérico tem relação com essa mania do vídeo, uma telinha hipersensível a qual fazemos deslizar com a ponta dos dedos sem necessariamente reter a atenção, cenário renovado diante dos olhos como se por passe de mágica.
Esse gesto movido a inércia e fastio é como uma pipoca mental que levamos aos olhos, alimento rotinizado da vida atravessada por hábitos recém-incorporados. Mesmo os filmes estão mais barulhentos, os desenhos de criança, as aulas de academia, os restaurantes, as escolas. Nada escapa a esse domínio do vídeo, nem uma reles receita de estrogonofe, que me remete não a um conjunto ordenado de porções, mas ao vídeo de alguém preparando a comida.
Penso então que talvez as duas coisas estejam em conexão, o vídeo e o som, mas existe algo na qualidade dessa combinação, uma qualidade ou defeito, que pode ser tanto do emissor quanto do receptor, que não parece o mesmo de dois anos atrás.
Há qualquer coisa que resisto a chamar de deficiência, de atraso, de uma perda gradual de acuidade e de capacidade de concentração (dificuldade de leitura, por exemplo), mas para a qual não encontro outros nomes que não esses.
Outro dia li que deixamos de manuscrever. Habituado a décadas de escrita pelas mãos, o tempo mais lento do punho percorrendo a superfície, anotando em progresso letra a letra, de modo a formar frases e as frases, textos, nosso cérebro está reprocessando a aquisição de conhecimento.
As experiências filtradas de outra maneira, pelas digitais e pelas telas, um apressado exercício “touch” ao qual se somam o diálogo nos aplicativos de troca de mensagem e o consumo cultural. Imperativo de velocidade, tudo potencializado (ou deteriorado) por mecanismos de aceleração.
Aceleração do que já é rápido, mais volume ao que já era alto, mais imagem num cotidiano já fartamente imagético, em suma, camadas de excessos se sobrepondo.
Na pandemia, lembro de passar dias sem ouvir a voz de outros que não os de casa. Os sons refratados, cada rangido e estalo de móvel, cada pequeno acontecimento registrado num diapasão de miudezas como um fenômeno de outra ordem.
A vida numa escala menor, de mais atenção e menos agitação, não por escolha, mas por imposição, da qual a gente saiu estranhamente mudado, talvez “mutado”.
Quem sabe a resposta coletiva a esse retorno tenha se bifurcado com a volta da vida: alguns, feito eu, aprisionados naquele ritmo, por necessidade ou por gosto, enquanto outros maximizam o que já era superlativo antes de o mundo parar.
Não sei como se resolve esse impasse. Não sei sequer se há impasse, que não é, se existir, necessariamente um problema.
Digo apenas que, com a TV ligada e os feeds já em vertigem às 7h30 da manhã, a vida pós-pandêmica se parece cada vez mais com uma máquina de pinball, esse artefato diante do qual temos a ilusão de controle porque acionamos alavancas, mas que, no fundo, está no comando o tempo inteiro.
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