Pular para o conteúdo principal

Visagem

 

A visão da avó saindo da igreja em passos lentos, o impróprio do horário, cinco da tarde, o pipoqueiro ao lado que não atinava para nada. Tudo isso me fez desejar que a imagem fosse tão somente o que era: a projeção do corpo que não existia, o vestígio da existência, a poeira sacudida do vestido que ela não usava mais e que a mãe enfiara numa sacola e mandara entregar a uma família mais pobre.

A avó tinha morrido, eu sabia, todos sabiam, e aquela era a sua missa de corpo presente, a cerimônia da qual eu tinha escapado porque não aguentava o cheiro de velas e os quadros da via-crúcis na parede. Tampouco o perfume forte da tia Ofélia, que se aprontava mesmo para ir à esquina porque o amor podia bater à porta a qualquer instante, até numa igreja de um bairro na periferia na quinta-feira de janeiro de um ano qualquer.

A avó não gesticulava, não olhava para nada. Era mais como se estivesse esperando ou tentasse se fixar num ponto muito além do seu horizonte, percorrendo com a vista o quarteirão repleto de crianças em ziguezague naquela hora, numa algaravia sem fim que ela sempre detestou porque menino tem parentesco com o diabo, gostava de dizer a pretexto de escandalizar.

A mim a avó não via mais, embora lançasse olhares em minha direção. Nem eu a via de verdade, ainda que estivesse lá e não no banco ao lado da minha mãe e dos meus primos, todos vestidos de branco formando escadinha que ia dos cinco aos onze anos, impacientes com a demora daquela cerimônia fúnebre sem justificativa. Afinal, já não havia nada, a doença tinha levado tudo embora, as carnes e o espírito, e da vó havia sobrado tão pouco. Uns retratos, umas peças gastas, um par de redes surradas que tinham preservado o cheiro dela.

Era uma invisibilidade mútua, perdêramos a comunicação, o elo. Nossos mundos estanques convivendo como duas substâncias imiscíveis. Fiquei triste. Nada era como ela dizia, como contava nas histórias de fantasmas que assombravam cômodos ou alas de hospitais psiquiátricos para onde meus tios se mudavam de tempos em tempos, todos mais ou menos acometidos por algum tipo de irrealidade.

A fantasmagoria era como um atordoamento, um desencontro, um desarranjo, e o terror, a impossibilidade de poder lhe dizer que sentia saudade e que voltasse pra casa antes das sete da noite. Mas a avó estava perdida para sempre.

Como quando desci do ônibus num bairro que não era o meu, o estranhamento de ruas e casas numeradas de outra maneira, muros de outra cor, crianças que não eram como as que eu conhecia, mas outras, mais escuras, mais sujas, mais estridentes.

A avó tinha deixado também que o ônibus partisse sem que desse por si. Da porta da igreja, parada num vestido azul tão bonito, o rosto como o da foto de quando tinha 50 anos, tentava encontrar sabe-se lá o quê, a condução que a levaria aonde a esperavam, o meu avô, o filho que viajara muito jovem e se enfiara na mata selvagem para nunca mais.

Também parado, eu lhe aceno, até digo seu nome em voz baixa. Peço que olhe pra mim enquanto ninguém consegue vê-la, antes dos meninos menores. Quero tê-la sozinha por um pouco de tempo. Mas é um sonho, e nos sonhos há sempre esse instante em que se tudo se passa à revelia de nossos desejos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d