Não tão grave quanto a pandemia de Covid mas igualmente contagiosa, alastra-se a peste dos relatos epidêmicos sobre a doença; fartas descrições do nada, perorações sobre a cadeira, deambulações sobre a posição do guarda-roupa, enfim, uma maçaroca de impressões ora líricas ora secas, mas sempre tendendo ao pessoal, que têm em comum o fastio, já que é seguramente além das capacidades humanas a esta altura dos acontecimentos oferecer qualquer coisa de nova em meio a tantas vozes assemelhadas, limitações de que este cronista é prova contundente, visto que tentou ele mesmo fazer-se audível passando em revista as veleidades que lhe ocorressem durante esses meses de reclusão durante os quais alimentou-se de leite de soja, pequenas porções de cuscuz com manteiga e jogos de videogame, tudo intercalado por leituras saltadas de trechos de romances, velhos e novos, de modo que jamais se detinha, demonstrando mais uma vez que a fartura de tempo livre, como costumava imaginar, não produz necessariamente bom pensamento e por sua vez boa literatura, tampouco o ato de pôr-se a escrever a respeito do cotidiano enquanto se mantinha confinado era garantia de qualquer mínimo traço estético.
Logo tomou-se de desgosto e, mais que isso, desaprovação, ranço mesmo, diante do que acabou se tornando um gênero próprio: o diário da pandemia. Mal lhe perguntavam se tinha lido tal ou qual relato sobre os impasses da vida no mundo pós-pandêmico, era como se uma touceira de mato urticante lhe fosse esfregada no rosto, tamanha a vermelhidão colérica com a qual se cobria.
Uma bobagem, evidentemente, já que não tinha condições, nem o almejava, de oferecer resistência a esse grande projeto literário que se punha em gestação naquele instante. Preferiu deixar de lado e aprimorar-se no que verdadeiramente importava agora, galgar cada vez mais espaço em Fall Guys, evoluindo até conquistar o máximo de coroas e assim mudar de traje, deixando para trás aqueles de coruja ou galinha, que quase todo o time de participantes tinha, para arrebatar o calção de ginasta com boné de beisebol.
Era esse o seu objetivo concreto, deixar-se conduzir não pela voz monocórdia que se desprendia de cada quarto de classe média, de cada lar com piso de taco, de cada mesa atulhada de livros e iluminação extraída de uma imagem de Instagram, numa só e mesma emanação egótica desse organismo coletivo apavorante a que chamamos clube dos letrados.
A isso, escolhia a corrida desajeitada de criaturas disformes cujos maiores desafios eram saltar plataformas e correr por gangorras, a escapulir de um mar cor de chiclete que avançava à medida que o tempo se contava no relógio imaginário de cada jogador.
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