Pular para o conteúdo principal

A árvore antiga

Um dia, então, como lhe falasse que não tinha raiz, que era como uma árvore que haviam plantado avulsa, contou a história da própria avó. Aos 13 anos, casara-se com o pai de sua mãe, um homem já velho que a arrebatou a cavalo como se fazia antigamente à revelia da família. Levou-a, e quando surgiram novamente estavam casados e ela, prenha do primeiro de dez filhos que teriam.

Os galhos rapidamente se espalhando, ela me disse, cada filho teria outros quatro e estes mais dois, dando origem a uma família numerosa que se reunia todo ano em muitas ocasiões, aniversários, Natal, Páscoa, despedidas. E nesses encontros havia sempre um tio ou primo que insistia para que a avó dissesse como tinha conhecido o avô, mas Iraci se opunha, primeiro com gestos como se afastasse uma mosca impertinente, depois com mais energia. Não era tempo de rememorar velharias, remexer nessas lembranças soterradas, falava baixo de repente, como se já fizesse apenas para si.

Então eu conto, ameaçava uma das irmãs, de modo que, seja na voz de outra pessoa, seja na da própria avó, a história sempre se repetia, como num rito de comemoração que selava o encontro daqueles que derivavam do mesmo galho.

Estavam numa festa, a menina com o cabelo preso num rabo de cavalo e as maçãs do rosto avermelhadas. Calçava sandálias muito surradas e usava um vestido que fora da irmã mais velha, também bastante gasto pelas inúmeras idas à igreja e ao dia da padroeira. Dançava com Belarmino, filho mais novo de um comerciante remediado da região, mas desde o início notara que havia outro. Cochichou com uma amiga, que lhe segredou, entre risinhos e puxões de braço: era o Luís, filho do Antônio que morava do outro lado da serra. Aquele Antônio sobre quem se dizia tanta coisa? Sim, aquele Antônio, e fizeram o sinal da cruz, como se falassem de um lobisomem.

Luís não era bonito nem feio, mas sua altura o distinguia entre os batorés da vila, homenzinhos encurvados de maltrato e lida puxada. Além disso, tinha uma qualidade: era elegante e dançava muito bem, de maneira que, embora estivessem acompanhados, ela com Belarmino e ele com Cibele, que parecia apaixonada, contentaram-se com os olhares de longe, primeiro discretos, depois cada vez mais atenciosos e finalmente enleados.

Passaram então a guiar seus pares para perto um do outro, rodopiando e sorrindo mais e mais, ele já suado com a camisa entreaberta no peito e ela agora com os cabelos soltos que formavam uma onda quando fazia um círculo nos calcanhares. Belarmino percebeu o flerte, quis arreliar-se, mas Iraci domou-o, enquanto Luís fez o mesmo com Cibele, pondo-a em sossego com uma carícia sem paixão.

Não se sabe se por obra do acaso ou lance de engenhosa inteligência, num giro mais impetuoso acabaram entrançados, o cabelo de Iraci preso a um dos botões da camisa de Luís. Tentaram afastar-se, mas o nó os unira. Afoguearam-se, quiseram ir embora. Alguém surgiu com uma faca para desatá-los, Iraci impediu que lhe cortassem um fio, Luís descartou arruinar a camisa nova, presente da mãe. De tanto pelejarem diante da situação aparentemente insolúvel, resolveram ambos que continuariam na festa.

Dançamos juntos até de manhã, resumiu a avó, e no outro dia Luís apareceu de cavalo com um saco de mudas de roupa. Perguntou-me se tinha compromisso, eu lhe disse que não. Então sente aqui, falou apontando a garupa do cavalo. Entrei em casa, vesti o mesmo vestido e fui embora. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas