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Dark (análise em três partes)

Segunda temporada de Dark estreia na Netflix 


Parte 1

Por onde começar?

Dark é dual desde o princípio, a gente sabe. Os diretores sabem, os atores e a Netflix também. De modo pouco sutil, a abertura produz essa leitura, com paisagens e personagens dividindo-se e espelhando-se, num efeito de fractal. Tudo se bifurca, e cada divisão conduz a uma narrativa diferente. 

Em algum momento, esses caminhos se cruzam, como nas melhores histórias de Italo Calvino. O tempo é um castelo com múltiplos corredores. Na literatura e no cinema, esse é um tema explorado exaustivamente: o da multiplicidade de veredas. Culpas, passado, tudo esconde uma porta que leva a outro universo, num efeito de mergulho em abismo.

Os caminhos percorridos, entretanto, nem sempre são os melhores e mais seguros. A tentação de consertar tudo e colocar as coisas de volta no lugar pode ser nada menos que desastrosa. Uma parte considerável da nossa vida simplesmente resiste a ocupar o seu devido lugar, ora porque não sabemos que lugar é esse, ora porque os lugares onde desejamos encerrar nossos incômodos acabam se revelando muito apertados e cheios de frestas. 

Logo, o passado emerge constantemente no presente, e o futuro se mostra quase sempre como resutado dessa interação entre o que volta e o que fica. 

Tudo isso é preâmbulo. Em resumo, Dark ocupa-se disto: o que aconteceria se futuro, presente e passado formassem a mesma matéria passível de mudança? O que seria de nós se pudéssemos nos movimentar livremente através dos anos, de maneira a alterar o curso dos acontecimentos segundo interesses próprios ou não? Corrigiríamos erros? Eliminaríamos acertos? Interviríamos quando achássemos que estaríamos fazendo algo bom para uma coletividade, pra nossa família?

Uma questão de fundo é moral, obviamente. Fazer a coisa certa é um desafio que agora extrapola o presente e se estende também ao passado. É claro que potencializa a angústia de homens e mulheres que já carregam seus fardos pra lá e pra cá, cuidando em fingir que está tudo bem.

Fazer a coisa certa, porém, tem implicações não apenas incertas, mas imprevistas, e o que pode parecer mais correto em um contexto torna-se violento em outro.

O relativismo do espaço-tempo, assim, transborda para o campo das atitudes e da ética – cada personagem ou grupo de personagens acumula culpas e segredos que, aos poucos, são desvendados. O que é certo, o que é errado? 

O que é presente, o que é passado? Qual é a linha central da vida de cada pessoa? É possível embaralhar eventos tão díspares? Há um fio que liga o destino de todos?


Parte 2 

Dark passa-se numa pequena cidade alemã cujos pontos referenciais são uma floresta e uma usina nuclear, que se conectam de modo decisivo ao longo de dez episódios de cerca de 50 minutos. Seus habitantes estão às voltas com o desaparecimento de duas crianças, o que acaba levando a um clima de desconfiança e, por sua vez, ao rompimento de elos estabelecidos muitos anos atrás.

O sumiço dos meninos também dá início a uma montagem de quebra-cabeças no qual cada peça não refaz a figura original, mas leva a nova peça, talvez perdida no tempo. É preciso encontrá-la noutro lugar, que não é um aqui, mas um quando. É essa procura, detetivesca mas também filosófica, que o espectador acompanha.

Cito um único personagem, Jonas, por entender que se trata de fato do mais importante, embora a série, do início ao fim, faça desfilar mais de uma dezena de rostos, todos com papéis cruciais na cadeia de eventos narrados.

Um parêntese: em Dark, é fácil perder o fio da meada. Não se sinta burro se isso acontecer. O efeito é proposital. É exatamente o que os diretores pretendiam. Chega a ser meio óbvio, inclusive, mas o resultado quase nunca é gratuito, nem a miríade de personagens tão difícil de identificar. Talvez anotar o parentesco de cada um não seja um exagero. Ter em mãos a árvore genealógica ajuda bastante.

Agora falo rapidamente sobre Jonas, o viajante do tempo. O nexo entre passado, presente e futuro. Na bíblia, Jonas era um profeta que foi atirado às águas e engolido por uma baleia porque desobedeceu a uma ordem de Deus. Arrependido, acabaria sendo cuspido ainda vivo numa praia perto de Nínive, a cidade contra a qual ele se recusara a pregar. Uma cidade pecadora e corrupta, tal como a Winden de Dark. Os moradores de Nínive, assim como os de Winden, estavam degradados e mergulhados em culpa.

Quando os primeiros garotos de Winden desaparecem, o que parece apenas tragicamente incidental ganha contornos mais graves quando associado a um mundo secreto de pequenos delitos ou culpas que começa a vir à tona. Traições, mortes, conchavos, agressões, ciúmes e disputas. Tudo que tinha sido recalcado passa a emergir, e o passado da cidade se expõe cruamente.

Assim como o Jonas bíblico, o Jonas da série também foi engolido, não por uma baleia, mas por um buraco no espaço-tempo. Um buraco de minhoca, pra ser preciso. Também chega a um lugar devastado, mas no futuro. Também é profético – é portador de uma carta que escreve para si mesmo. Também é branqueado – a história bíblica fala que a pele do profeta se torna mais branca porque ele sobrevive três dias e três noites dentro da baleia.

Três dias, três noites. Três e três.

O número 33 é fundamental para compreender outro conjunto de referências de Dark: a cada ciclo de 33 anos, a Terra e outros astros se alinham, e essa conjunção especial causa uma perturbação no campo magnético do planeta. Grosso modo, quando isso acontece, uma fenda no tempo ou campo de Higgs se abre. É por ela que os personagens se deslocam. O bóson de Higgs, partícula prevista teoricamente em 1964, só foi comprovado poucos anos atrás, em 2011, após experimentos no Grande Colisor de Hádrons, o maior acelerador de partículas já construído. O LHC funciona em Genebra, na Suíça, a 175 metros abaixo do solo. Nele provou-se a teoria do físico britânico Peter Higgs, para quem a existência do bóson era fundamental nos esforços de compreender os eventos que se seguiram ao Big Bang.   

Na série, essa fenda no tempo é guardada por portas em cuja face lê-se a inscrição em latim Sic mundus creatus est (Assim o mundo foi criado). É uma frase antiga, presente na tábua esmeraldina, uma compilação de 15 máximas de Johannes Hispaniensis, no livro Secretum Secretorum, também conhecido como o livro que contém o segredo dos segredos. Foi escrito ainda na Idade Média. Situada numa das cavernas nas proximidades da usina nuclear, essa fissura tem uma particularidade: embora a narrativa sugira que o portal do tempo tenha sido aberto após um acidente nuclear como o de Chernobyl, as portinholas que dão passagem aos corredores do tempo são mais velhas – a inscrição em latim é apenas um índice disso.

Pra além desse aspecto, a frase Assim o mundo foi criado aponta para um dos problemas centrais de Dark: o conflito religião x ciência, fé x racionalidade. Ou seja, a criação da vida deu-se por vontade divina? Ou por uma explosão como aquela que havia aberto uma dimensão paralela na cidade de Winden? 

A chave para a resposta está em Noah. 

Parte 3

E aqui finalmente chegamos a Noah, a grafia hebraica para Noé, outra personagem com referências bíblicas no universo da série Dark, nova aposta da Netflix.

Não sabemos muito sobre Noah, apenas que se veste de padre, mas estranhamente não carrega uma bíblia, tampouco usa um crucifixo ou qualquer outro artefato da liturgia católica.

Noah exerce um poder sobrenatural sobre outras pessoas. Ele está por trás, por exemplo, do quarto com uma cadeira e beliche por onde passam os garotos que depois serão mortos e descartados, ao que tudo indica não apenas em 1986, mas também em 1953, como os meninos encontrados no terreno ao lado da usina, à época ainda em obras.

A pergunta é: quanto de Noé há em Noah? Na bíblia, Noé constrói uma arca para salvar espécies animais e repovoar a Terra após o dilúvio que dura 40 dias e 40 noites, resultado da insatisfação divina com sua própria criação. A rigor, Deus mata todos os seus filhos porque acha que eles não estão se saindo muito bem. Escapam apenas Noé e sua família.

Salto para Winden, a cidadezinha industrial que divide sua rotina com uma floresta e uma usina nuclear. É nesse cenário que, um belo dia, conhecemos Noah, também ele um viajante.

Mais que isso: Noah ou Noé está aperfeiçoando o que parece ser uma máquina de transporte. Uma arca, mas do tempo. Para tanto, conta com a ajuda de Helge, que sequestra garotos que depois serão usados como cobaias. A rigor, a tarefa de Noah é essencialmente científica, mas alguns detalhes sugerem que os trabalhos da dupla vão além da mera disputa pelo controle de uma nova tecnologia, a saber, a viagem inter-dimensional.

No episódio final, o próprio Noah explica que, ao cabo de tudo, trata-se de mais um exemplo do grande imbróglio da humanidade no curso da história: a velha batalha entre bem e mal. Winden é palco de uma guerra entre luz e sombra. Ele, claro, representa a luz, assim como Lúcifer, o mais belo dos anjos.

Do outro lado, estão Jonas e suas projeções no tempo – a de 2019 e a do futuro, além do relojoeiro-cientista e da enigmática Cláudia, cuja missão não está clara até agora.  

Hipótese 1: Noah está certo, e a máquina do tempo é uma nova arca que salvará parte da humanidade de um novo apocalipse. Não custa lembrar que o nome do último episódio é exatamente "Alfa e ômega", a primeira e a última letra do alfabeto grego. Os dois caracteres estão referidos no livro bíblico do Apocalipse, no qual Deus afirma: Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o derradeiro, o princípio e o fim.

Hipótese 2: Noah é o próprio Anticristo, ou seja, o cara que vai arregimentar um pequeno exército que possa ajudá-lo a tocar fogo no mundo e derrotar seus adversários, liderados por Jonas. Isso explica o grande interesse de Noah por Bartosz, melhor amigo de Jonas mas de quem acaba se afastando depois de uma briga por ciúme - a namorada de Bartosz, Martha, meio que se apaixona por Jonas, mas um impedimento os distancia. 

Hipótese 3: nem uma coisa nem outra, e as referências bíblicas não ajudam a explicar muito além do fato de que essas personagens cumprem um destino parecido com os de suas correspondentes nas escrituras sagradas. Num caso como no outro, Jonas e Noah estão no centro dessa disputa. Que papel cada um irá desempenhar, se mais tendente à luz ou à sombra, só a próxima temporada dirá.

E o que mostrou o final da primeira temporada de Dark?

Que Jonas encontra um futuro conflagrado, faccionalizado, marcado por batalhas militares. Logo quando deixa a caverna após viajar novamente no tempo, ele se depara com uma placa de alerta escrita em cinco línguas: japonês, russo, inglês, francês e alemão. A multiplicidade de idiomas sugere que o aviso se destina ao máximo de pessoas, o que pode significar, no extremo, um conflito de proporções globais, tal como uma 3ª Guerra Mundial.

E por que uma guerra? Talvez porque as potências tenham descoberto que podem viajar no tempo e corrigir eventos históricos. No caso do Japão, por exemplo, quem sabe fosse interessante evitar o lançamento de duas bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki. 

Antes disso, porém, o próprio Jonas em sua versão adulta explica ao Jonas mais jovem que a razão de sua volta ao passado era uma tentativa de impedir que o futuro se tornasse o que havia se tornado. Ele está ali para reparar um erro. 

Reforçando o jogo de dualidades da série, tem-se, então, duas forças em oposição, uma de natureza divina (Noah), outra mais terrena (Jonas). Dois personagens bíblicos com uma carga particular de história apontando para direções diferentes. E dois caminhos possíveis dentro da caverna: ao final da passagem, o que se vê é uma bifurcação, que se ramifica ao passado e ao futuro.

Os textos acima foram escritos em dezembro de 2017

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