Abro o arquivo e nele vou
encontrando pedaços de textos, fragmentos de reportagens e trechos de artigos,
coisas avulsas que fui juntando ao longo deste ano que é ele mesmo um amontoado
de cacos.
Cada texto o mosaico de outros.
Sobreposições, é como chamo.
Não soltos, entendam. Os textos
se costuram uns aos outros como pessoas numa festa dançando a mesma música. Cada
uma pensando um pensamento diferente, mas todas presas ao mesmo fio.
É esse fio muito fino que
enreda todo mundo, um novelo discreto, comunidade de fatos aleatórios
interligados por coisas diminutas: um cheiro, um jeito de sorrir, uma
predileção. Nada especial.
P escreve perguntando se passei
a acreditar em Deus. Eu respondo que não, que é apenas um modo de
fantasiar a vida, nem mais nem menos interessante que qualquer outro.
P, a desconfiada. Eu lhe falo que
hoje pela manhã um pensamento passou a se comportar estranhamente
e a exigir certa atenção, como essas crianças que se fingem de mortas para que os adultos as percebam.
Um título então começou a
rodopiar no salão desorganizado da minha cabeça: “Pequena beleza”.
Estava com um livro na mão, “O Buda
no sótão”, cuja autora não lembro, apenas que gostava. Lia de pé, sem pressa,
aproveitando cada segundo, sem que nada ou ninguém me tenha levado até aquele
momento. Era inteiramente gratuito, e eu estava feliz.
A isso dei o nome um tanto
cafona de “pequena beleza”, e sobre isso pensei ainda um instante. Um encontro
com a miudeza, com o trivial no meio do sábado.
Abro outro arquivo. Uma análise
política já caduca, a impressão de que o mundo viria abaixo na semana seguinte
e todos estaríamos nas ruas numa luta sem fim, cada corpo deitando-se sobre
outro corpo, as línguas muito venenosas disputando o miolo das coisas.
E talvez venha mesmo. O mundo.
Abaixo. Eu espero. O tempo custa, mas uma hora vemos acontecer tudo que imaginávamos que aconteceria.
Talvez o mundo se renda e
declare um vencedor, a quem caberá indicar não o caminho do gozo, mas do abismo.
Hoje iremos a uma festa. Uma comemoração
a essa luta, ao miolo e à rendição.
É novembro, quase fim de ano,
digo a mim mesmo surpreso por haver chegado até aqui. É como se tivesse saído
andando de casa sem rumo e atingido o ponto mais distante da cidade, que agora é outra. Não as mesmas ruas, mas ruas para as quais olho e não as reconheço.
É nesta cidade de espantos onde moro.
Uma coisa bonita é que as
fachadas de lojas já estão enfeitadas, por todo canto luzes e guizos de natal
refletem a luz e distraem da vida.
Na praça há uma coluna metálica
que se espicha. É em torno dela que daqui a pouco vai se armar a árvore do
natal feita com toalhas de mesa colhidas da classe média da cidade.
Nada disso estava escrito no
arquivo original aberto ao acaso sob o título “A formação de um clássico”.
Nada disso existia antes de começar a ler um pedaço esquivo de texto e depois emendar noutro segmento que me levou a outro e finalmente até agora.
Nada disso existia antes de começar a ler um pedaço esquivo de texto e depois emendar noutro segmento que me levou a outro e finalmente até agora.
A este momento.
E assim basicamente o ano
inteiro se desenrolou, numa trajetória errática cujo desfecho é este.
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