Monstro olhou-se no espelho, a barba maior do
que de costume. Aparou com tesoura, errou novamente e fez um buraco onde
deveria haver uma curva suave.
Monstro contrariou-se, mas, como ainda eram
nove horas da manhã, deixou pra lá. Era cedo para pequenas chateações,
sobretudo uma que não teria importância ao longo do dia, salvo se se
considerasse que o aborrecimento causado por uma incisão desastrada nos pelos
do rosto provocaria uma cadeia de reações infinitesimais que, ao final do dia,
redundariam numa tsunami de mau humor, o que certamente influiria no modo como
Monstro acabaria revisitando os últimos acontecimentos.
Era bem possível, Monstro sabia, todos a sua
volta sabiam. Os meses tinham sido exatamente assim, difíceis de entender.
Naquele dia, Monstro havia se demorado na
cama, não queria levantar. Reconstituíra os eventos do dia anterior, uma
sucessão de pequenos acidentes cujo sentido geral não compreendia. Apelara a
fios soltos, costurara umas pontas a outras na esperança de que, atando e
desatando, conseguiria formar uma rede e nela enxergar uma imagem que fosse,
uma que sintetizasse as horas e os segundos, que o dispensasse da tarefa de
pensar, que o levasse a sair de um labirinto, que apontasse uma porta e depois
dela um lugar de chegada, qualquer que fosse ele.
Um quarto aonde iria no final da tarde pra
descansar de tudo, uma fenda no tempo, uma máquina de transporte que o levasse
ao futuro e o trouxesse ao passado ao cabo de algumas horas.
Lusco-fusco, assim podia chamar-se a forma
que se desenhava no teto do quarto de casa. Embora fosse cedo ainda, eram
figuras oblíquas, tais como as que resultam dessa luz enviesada que o Sol lança
sobre as pessoas e as coisas quando vai morrendo aos poucos. Uma luz que lambe
a superfície em gesto de despedida.
Como se aplicasse o teste de Rorschach, encantava-se
com o olhar. Sombras, uma projeção da janela semicerrada, formas dançantes que
adivinhavam um tempo. A tentação de encontrar resposta nas menores sugestões do
cotidiano, a sedução de sentido no que era apenas caos, a procura cega por algo
que fosse além de areia escorregando dentro de uma ampulheta.
Os lençóis tinham o cheiro acre do corpo. Um gosto
de ferro na boca. Músculos repuxados nas pernas e nas costas depois de uma
volta de bicicleta. Sem sexo havia três dias. O tempo parado, o corpo como que
morto novamente.
Monstro tinha morrido. Não eram nem dez
horas, mas ele tinha morrido.
Sereno, mira o teto quando a campainha do
apartamento soa alto. Batem na porta. Alguém chama. É o tempo presente. Não era
mais pensamento nem retrospecto, mas o agora se desenrolando diante dele. Cada
instante requerendo uma resposta.
Foi até a porta, abriu-a. Era Maurício, o porteiro. Disse bom dia, recebeu o pacote e trancou a porta à chave novamente.
É uma caixa enviada pelos
Correios. Dentro uns poucos livros que tinha pedido havia duas semanas. Histórias
pelas quais não tinha agora o menor interesse.
Monstro deposita a caixa sobre a mesa e vai até o banheiro. Volta-se ao espelho mais uma vez. A falha
na barba. O rosto bronzeado, as entradas na cabeça, os olhos estreitos e a boca
como uma linha feita a lápis, levemente arqueada como a apreender cacos de tragédia no dia a dia.
Orelhas pequenas, sobrancelhas grossas, óculos
frágeis e antigos para enxergar melhor o que talvez fosse o caso de não enxergar de modo algum.
Ombros
baixos, braços finos e queimados.
Monstro tira a roupa. O pau está mole, levemente inclinado para o lado esquerdo. É escuro, tem um sinal como o que carrega no canto esquerdo do queixo. Pelos em redor, a virilha branca demarcando o uso recente do biquíni.
Coxas mais fortes do que há três semanas, canelas finas, pés longos e cavados. Dedos compridos. Unhas por cortar. Pelos sobre cada um dos dedos. Dedos em cada um dos pés. Dois pés. Duas pernas. Duas mãos, dois braços. Umbigo fundo e escuro.
Cicatrizes no braço e no saco. Cicatrizes no joelho e na mão esquerda. Cicatrizes nas costas e no pé direito. Todas relacionadas a algum incidente num tempo já tão remoto.
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