A resposta de L não demorou,
o que não me surpreendeu. L escreve com uma argúcia impressionante, suas
palavras abrem caminhos como pequenos bisturis, pra usar a expressão que ela
mesma já utilizara pra se referir ao modo como pretendia descobrir o que se
passava consigo. Uma metáfora clínica, medicalizante, cirurgicamente empregada a fim de sugerir que operava não no terreno movediço no qual eu gosto de me
movimentar, esse de palavras jogadas ao acaso.
L sempre cavava mais fundo, ia mais longe, mergulhava e demorava a tornar à superfície. Nesse ponto somos diferentes, ela uma nadadora profissional orgulhosa de suas braçadas e eu em nado cachorrinho tentando chegar até a outra borda da piscina.
L sempre cavava mais fundo, ia mais longe, mergulhava e demorava a tornar à superfície. Nesse ponto somos diferentes, ela uma nadadora profissional orgulhosa de suas braçadas e eu em nado cachorrinho tentando chegar até a outra borda da piscina.
E o que disse L? Que não é L,
mas uma personagem, ou seja, L se recusa a assumir essa identidade. L não quer
ser L, mas uma outra. Melhor dizendo: L considera-se uma outra e não esta com
quem converso, a cuja personalidade atribui muito de fabulação e um tanto de
egocentrismo.
Foi disso que L me acusou, “egocentrismo
especular”, outra de suas expressões brilhantes.
Se entendi bem, minha amiga
L, que não é a personagem L, mas a verdadeira L que me escreveu tão logo leu o
que havia escrito aqui, garante que não passa por qualquer processo de revisão,
entendida a palavra como a ação de voltar a vista novamente a uma planície já gasta pelo tempo, um
estirão de estrada já palmilhado. Estou cansada, disse. Me entedia ver tudo
acontecer de novo.
Mas não vejo assim. Revisamos
e ficcionalizamos na mesma medida. O fio da meada é na verdade a ordem que instituímos
quando tudo o mais falha. E sempre falhamos, seja em continuar, seja em voltar
no tempo. O tempo é a própria falha.
Se contamos o que se passou,
falhamos. O que se passou é perdido pra sempre, não recuperamos, e disso L sabe
melhor que eu, talvez. L sabe que as coisas têm uma dimensão inapreensível
contra a qual lutamos de tontos que somos.
Dito isso, passamos a jogar
com os espelhos, um jeito de procurarmos um ao outro na imagem que projetamos. L devolvendo as fantasmagorias que eu lhe havia
apresentado em nossa conversa mais recente, eu por meu turno insistindo em que L era L e não uma outra, um pouco receoso de aborrecê-la com esse ramerrame de que o limite do ser está além do ser. Do mesmo
modo que eu também sou L e não um outro, L poderia ser esta e não aquela que pensa que é.
Assim eu propunha que L assumisse uma identidade terceira e falasse como outra, enquanto eu mesmo desejava ser esse que inventa, que fala e acredita simultaneamente, que elege o pacto como uma verdade, o acordo como o elo mais importante entre duas pessoas. Em nome da mentira, falaríamos apenas a verdade. Em nome da verdade, diríamos mentiras.
Assim eu propunha que L assumisse uma identidade terceira e falasse como outra, enquanto eu mesmo desejava ser esse que inventa, que fala e acredita simultaneamente, que elege o pacto como uma verdade, o acordo como o elo mais importante entre duas pessoas. Em nome da mentira, falaríamos apenas a verdade. Em nome da verdade, diríamos mentiras.
L não gosta de jogar. Nem ela me convenceu
de que não revisa seus anos em busca desse fio de Ariadne, tampouco eu fui
convincente na tentativa de convencê-la de que L é L mesmo quando não é. Nossa fala, eu lhe disse, é tão alheia quanto nossa. Nunca é a fala original desprendendo-se
do fosso que somos e no qual afundamos. Mas uma fala construída com os pedaços que
juntamos na rua.
Continuamos assim, entre mudos e expectantes. Depois
suspendemos a conversa e fui trabalhar. Passei horas pensando em tudo, tomei
café e continuei pensando, eu mesmo agora entregue a esse trabalho de revisar,
repassar, revisitar antes de decidir novamente que o tempo é criação e nessa
criação somos tanto deuses quanto criaturas.
O resultado é que começo a
concordar com L. Acho que não, não a conheço, nem ela a mim. Somos estranhos, e
nos estranhamos o tempo inteiro. L diz
que a assusta ver a si mesma como eu a vejo, no espelho que eu mostro.
Então repito apenas comigo que temos um acordo e finalmente vou embora.
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