A novidade, não sei exatamente se nova, é fotografar a paisagem
natural ou humana e apor, como notinha de rodapé não irônica (ao menos a priori): "sem
filtro".
Isto é, sem intervenção, sem manipulação, sem truques de prestidigitação. As coisas como realmente são: uma manhã de céu azul (sem filtro), um sorriso (sem filtro), uma garrafa de cerveja na mesa (sem filtro), os dois pés descansados sobre o
tamborete tendo ao fundo as dunas arrastadas grão a grão pelo vento aracati - maravilhosamente sem filtro.
O “sem filtro” pretende atestar algum nível
de sinceridade menos óbvia, funcionando como um selo de autenticidade
semelhante ao afixado em alimentos orgânicos, de modo que, à beleza da
situação, acresce dizer, como forma de ajuntar inegável valor ao produto: sem agrotóxicos.
Sendo assim, o orgânico está para os alimentos como o não filtrado está para o real: a cereja do bolo. Indo um pouco além, é possível enxergar no conceito de "orgânico" uma noção comum a essas esferas. Um exemplo: pensem na farta matéria bruta cultivada pelos "midialivristas" e despejada nas ruas e internet nos últimos meses. Nela, prevalece a ideia de que a realidade, quando vista sem filtro (não editada), é intrinsecamente boa porque não contaminada pelo "agrotóxico", que manipula as características naturais do organismo, seja ele uma beterraba ou uma passeata.
“Sem filtro”, então, equivale a dizer: é tudo como vocês estão sentindo agora. Sobre o real não houve qualquer operação que visasse a modificar a estrutura primeira,
anterior, virginal. O que está aí é o que está aí. O mundo, bonito ou feio por
si mesmo, dispensa o artifício. Basta olhar com atenção. Basta dispensar o
filtro – ou a edição, encarada como mecanismo corruptor.
Ocorre que, por uma impossibilidade que vem
de berço, a espécie humana não é fisiologicamente (ou filosoficamente?) capaz de perceber "as coisas como são", nem as coisas jamais se mostram como são - no máximo, como achamos que deveriam ser, e é nessa distância que se perdem as estribeiras. O
acesso direto ao registro da experiência, as relações não mediadas, a horizontalidade radical, a sinceridade como plataforma moral: eis aí um programa
ético e estético que tem tudo para servir de bitola a uma nova utopia da
juventude, assim como a “imaginação no poder” foi a da geração de 1968. Só o tempo vai dizer se a era do “sem
filtro” (e, por extensão, do não mediado) vai estourar como uma bolha financeira; ou se vai nos conduzir a algum patamar de
convivência entre o antigo jeito de tocar a vida e esse novo ainda sem nome.
Pessoalmente, acredito que passamos de uma mediação a outra: a do mito pela da igreja, a da igreja pela da ciência, a da ciência pela do Estado e, agora, a do Estado pela das pessoas. É possível que a ordem dos fatores seja outra. Entre elas, porém, o elemento que aproxima o humano do humano é indispensável. Me arrisco a suspeitar que toda a crise de narrativa (da imprensa, inclusive) tem raiz nesse deslocamento de mediadores. Jornais, ciência, academia, polícia, família: a condução da narrativa depende hoje menos dessas superestruturas do que das pessoas. "Sem filtro", aqui, não significa ausência de mediação, mas multimediação.