Pular para o conteúdo principal

Questões de moradia


Acima, encontro familiar em residência no bairro Conjunto Ceará na década de 1970: entes congratulam-se mutuamente e hasteiam bandeira como forma de celebrar os laços inquebrantáveis da vida. Menininha vestida de bailarina canta Macarena à capela  

 Não imaginava que teria tanta dificuldade ao procurar um apartamento novo depois de ficar cansado da vista de telhados de amianto e terrenos baldios e resolver apostar na qualidade de vida, essa soberba expressão que vinha evitando desde os 13 anos. Por qualidade de vida entendam um pouco de verde, quem sabe até sombra durante o dia inteiro e uma área de lazer agradável, ótima para promover reuniões com os amigos e familiares nos fins de semana a fim de exercitar os ritos que mantêm funcionando as engrenagens dos laços sociais.

Um objetivo secundário nessa procura, mas que não pode deixar de ser citado, é a tentativa profilática de escapar da neurose do cara do apartamento 7, um assassino em potencial, e das síndromes do velhinho do 13, um homem com tendências a ter muitas tendências estranhas, tão estranhas a ponto de não caberem numa classificação genérica de problemas neurológicos ou patologias previstas no DSM 5, ou seja, tendências inclassificáveis, surpreendentes, ameaçadoras e que em última instância talvez sejam até bem mais que meras tendências, um vocábulo que, agora vejo com clareza, soa inofensivo, e tudo que o velhinho do apartamento 13 não parece ser é inofensivo.

Foi pensando nessas vantagens virtuais que saí em busca do lar perfeito, aquele apartamento nem caro nem barato, nem longe de tudo a ponto de consumir todo meu dia num vaivém sem fim, nem perto o suficiente para que transforme as noites em um pesadelo de pandeiros e bumbos e garrafas sendo arremessadas de encontro a um poste ou homens bêbados urinando no tronco de árvores e chamando as garotas para dar uma esticada em algum outro bar, ainda aberto apesar de muitas pessoas já passarem nas ruas ostentando olheiras em direção ao trabalho nosso de cada dia.

Foi pensando também em ter um pouco mais de espaço para fazer as coisas que gosto que passei a questionar com relativa insistência se a parca área disponível para circulação do atual apartamento não estaria gerando um paradoxo, qual seja, o de frequentemente ocupar, simultaneamente, a sala, a cozinha e quase o banheiro, habitando uma zona sem contornos definidos cujo corolário é provocar certa confusão mental, agravada ainda pela presença marcante de livros e revistas e de um cabide com roupas estendidas, dois itens freqüentes em salas de estudo e lavanderias, respectivamente. Logo, ao complexo doméstico inicial formado por sala e cozinha e quase banheiro, acrescem-se a biblioteca e a lavanderia, resultando no que venho chamando de “supercômodo matrioska” ou “worm hole doméstico” e eventualmente de “concentradão hipertrofiado de funções habitacionais”.  

Quando tudo que mais queria era apenas um lugar com um pouco menos de muros encaracolados de concertina dando voltas como enfeites atados à cintura de um brincante de carnaval, menos fuligem na janela e menos arrombamentos no meio da noite.

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas