Atravessei quatro estações, matei mais homens que monstros, vasculhei
buracos, salvei uma garotinha da morte, fui salvo por ela, caminhei no frio,
resolvi charadas, desvendei mistérios, acionei mecanismos que levantam portas e
outros que baixam portas, fui a partes diferentes de muitas cidades e
presenciei o horror provocado por uma epidemia.
Lembrei de quando tudo era diferente, havia pessoas nas ruas e jornais e cinemas e cafés e aos domingos as praças estavam cheias. Reencontrei fotografias perdidas sob os escombros do que costumava ser uma casa. Sobrevivi ao custo dos despojos de famílias infectadas.
Lembrei de quando tudo era diferente, havia pessoas nas ruas e jornais e cinemas e cafés e aos domingos as praças estavam cheias. Reencontrei fotografias perdidas sob os escombros do que costumava ser uma casa. Sobrevivi ao custo dos despojos de famílias infectadas.
E ainda não é o fim.
O que vou dizer é algo deliberadamente grandiloqüente
e, por isso mesmo, adequado à situação: The
last of us é talvez o melhor jogo de videogame já feito, não apenas no PS3,
mas também nos velhos SNES, Mega e Master, com uma breve passagem pelo Mega
Drive, já que falo a partir de uma experiência particular com consoles,
particular e errática – a de um jogador constante, mas não contumaz, que testemunhou os estertores
da era Atari e passou incólume à primeira geração de PS.
Deixando de lado a discussão sobre videogame
e arte, Last of us equilibra
inteligência e lirismo, drama e terror, suspense e aventura. Tem ótimos
diálogos, dublagem excepcional, jogabilidade quase perfeita, não cai nas
armadilhas dos jogos com mundo aberto nem cede às facilidades dos roteiros pré-moldados.
Tem falhas também, e elas são evidentes: certa burrice dos inimigos, que podem
ser mais ou menos atentos, e a pouca a variação no padrão dos obstáculos e
charadas que encontramos pelo caminho, quase sempre muito parecidos. Resolvido o
primeiro problema, resolvem-se todos. A lógica será a mesma.
Tudo isso diz respeito à parte técnica do
jogo, mas há outra, igualmente importante, quem sabe até mais: a narrativa.
Nesse ponto, Last of us é seguramente superior a qualquer outro jogo. Pela simplicidade,
verdade, verossimilhança, raciocínio, evolução e interação entre as
personagens, que reagem de modo diferente a problemas morais diferentes no
decorrer da partida (não gosto do termo, mas foi o que encontrei; ressalvo apenas que o conceito de "partida" é bastante precário neste contexto), o que aponta para uma maturidade, para uma
evolução, e também aqui o jogo é um divisor de águas.
O sofrimento das
personagens é palpável e pode ser experimentado com um grande nível de realidade
em diversas situações.
Ou seja, a empatia, um acordo de difícil negociação
entre público e personagem, autor e leitores/espectadores/jogadores, é uma das
qualidades de Last of us.
Apesar das pequenas falhas (muita gente se
sentiu prejudicada com o baixo volume das vozes dos personagens, por exemplo,
ou com a verborragia da pequena Ellie, o que estragaria os momentos de tensão), o sucesso de Last of us resulta de uma técnica potente a serviço de uma narrativa vigorosa, capaz de fazer
qualquer um atravessar madrugadas inteiras vidrado na jornada de Joel e Ellie.
Sobre a adolescente, que rende,
apenas ela, um pequeno ensaio: lembrem-se de que a personagem cresceu privada
do contato com a cidade, com o ambiente externo, o mundo além-bunker, fora da
zona de controle. Ela é filha do claustro. Como Joel, é uma sobrevivente. Quando
a viagem tem início, tudo é novo para Ellie, dos cartazes de filmes afixados
nas paradas de ônibus à textura das plantas que crescem entre as fissuras na
parede de apartamentos.
Diferentemente de Joel, porém, o olhar da garota é
virginal. É o contraponto necessário. Até aqui, antes do fim, é bom repisar, Joel
está decidido a permanecer vivo, custe o que custar. Para ele, a cidade é a
representação do perigo, do alheio, do desconhecido, da ameaça. Uma selva
repleta de infectados.
Ellie enxerga beleza num mundo devastado. Ela não se
sente apavorada, amedrontada nem inibida. Para a menina, a cidade se revela uma
segunda natureza. O destino dos personagens está assegurado nesses dois polos:
o da naturalização e resignação a uma paisagem aterradora (Joel). E o da frescura
de um olhar original, que não se fragiliza nem se esgota ao relacionar os
horrores do apocalipse urbano à beleza de uma roseira que cresce dentro de um
supermercado abandonado (Ellie). Não por acaso, ambos encenam também as tensões características da fricção entre os mundos adulto e infantil.
O belo resiste a toda a feiura, parece dizer Ellie o
tempo inteiro. Joel demora a aceitar essa verdade, mas acaba compreendendo aos
poucos.
Ao menos até aqui. O jogo não terminou. Ainda não é o fim.