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É teste pra cardíaco, amigo




Fim de férias.

É tempo de adaptar o tempo ao trabalho, o trabalho à vida, a vida às necessidades, as necessidades às vontades, as vontades aos desejos, os desejos às energias, as energias às prioridades, as prioridades aos objetivos, os objetivos às metas de longo prazo, as metas de longo prazo às de curto prazo e ambas às de médio prazo, todas as metas à lista de tarefas redigida ainda no começo do ano, o começo do ano ao meio do ano que já se avizinha e este ao restante do ano, que não demora a chegar.

Tudo implicando tudo, escolhas modificando escolhas e por aí vai.  

Voltar das férias é como regressar de um planeta cujas leis diferem em absoluto das que vigem no restante do universo, pulamos para encolher e nos agachamos para saltar, à sombra faz sol e chove debaixo da cama, é tudo escandalosamente estranho, um universo antinatural, ou seria o nosso universo cotidiano o antinatural e não esse de que voltamos cheios de uma energia bizarra? Bizarra no sentido empregado no desenho do Super Homem.  

Como dimensão extravagante da existência, como cano de escape para um ano inteirinho dedicado a longas jornadas de trabalho, deixar as férias no retrovisor e retomar novamente o ritmo da pândega diária requer algum esforço, quando não uma verdadeira batalha contra o vaivém antigo, o nosso eu lírico atabalhoado entre as leis de lá e as de cá.

Enfim, as férias terminaram, e isso é definitivamente irrevogável, não adianta apelar, não há nenhum Joaquim Barbosa para ouvir os seus lamentos.  

Fato é que ninguém regressa das férias plenamente renovado, quem diz isso está mentindo descaradamente, não acreditem, não percam tempo, dêem as costas. Falo por experiência própria, a gente volta penalizado por não haver aproveitado mais e, pior, intimamente convencido de que de agora em diante tudo será diferente, a vida assumirá um ar circunspecto, os projetos deixados para trás nos primeiros meses do ano – já é maio, afinal – agora piscam com um sinal de alerta que nos diz basicamente o seguinte: resta apenas um semestre para 2013 virar a página do calendário e com ele as perspectivas de um ano cheio de realizações e todas essas coisas que dissemos no réveillon.

Diferente do quê? Diferente pra quem?  É aí que a porca torce o rabo.

(Com tanta edição de texto, as duas perguntas logo acima perderam irremediavelmente o sentido, tinha uma intenção inicial e agora fico pensando se era isso mesmo ou se pretendia perguntar outra coisa, de modo que me satisfaço em apenas considerar tudo de antemão totalmente sem sentido, se é que me entendem). Então vamos em frente, pessoal.

E pra encerrar: de qualquer maneira, os planos estão aí, as metas, as planilhas, o caderno de anotações, as canetas, os livros indispensáveis e a mochila de viagem, além dos filmes de que não posso abrir mão sequer para ir até a esquina comprar cigarro, além da moça linda que me acompanha e das plantas e dos travesseiros e também da nossa coleção de pingüins espalhada pela casa – o grupo é formado por três exemplares, um mais gordinho cuja roupa vem largando pedaços grandes pela casa dia após dia, uma de nariz empinado que não se sabe até agora se é solteira, casada ou enrolada, como diria Silvio Santos, e um, o último, meio hippie, meio zen, que talvez por isso nunca consiga muito bem entender, mas a moça caprichosa consegue e isso é o que interessa agora. 

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