Embora
não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os
espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não
são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga
certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas,
o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio,
reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação
pecuniária, mas a transcendê-la.
Antes
de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira,
desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de
que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na
hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e
consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o
que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela.
Ou
um telefone celular, que, por mais inteligente que possa parecer, ainda é
incapaz de se consolidar no imaginário como qualquer coisa além de um naco
engraçadinho de plástico e circuitos eletrônicos com bochechas touchscreen.
Também
regido por essas leis não escritas, um estádio de futebol não é mais somente um
estádio, mas uma arena, expressão que tem muitos significados. Entre eles, o de
abrigar eventos de natureza distinta, como shows de rock e celebrações
religiosas, passando por exposições e feiras. Na livraria, um DJ anima o
lançamento de um romance, que logo vai dividir o espaço com jogos, brinquedos,
bonecos, filmes e uma empadinha deliciosa de queijo de búfala.
Os
desktops
estão muito próximos da aposentadoria, assegura um figurão da informática,
palavra que também deve estar pertinho de pendurar as chuteiras. O futuro,
dizem, pertence às multitelas, aos mecanismos anfíbios e às ferramentas de cujo
esforço supremo resultará uma economia de tempo para todos. Um tempo extra que certamente
empenharemos na atividade algo esotérica de encarar telas por 24 horas
ininterruptas.
O
espaço doméstico também sofre grandes alterações. Se a loja de conveniências
agora também é café e o lava-jato oferece serviços de corte de cabelo para
homens e mulheres, a sala de casa já não é uma sala. Nesse novo estatuto que organiza
o ambiente residencial, além do destino a que fora incumbida, a sala cumpre múltiplas
funcionalidades, que são acionadas por um biombo ou porta corrediça ou qualquer
outro mecanismo que demarque a transição de zonas.
O
banheiro esconde um armário; um armário, outro armário; a cozinha, habitualmente
reservada a encontros mais pessoais, contamina-se de formalidade; o quarto das
crianças vira miniacademia.
Espraiado como um rei a quem não falta nada, exceto
súditos, o sofá esconde uma vocação irritantemente festejada: não se limita a abraçar
bundas e cotovelos. Com um leve toque, transforma-se em cama e, nos casos mais
graves, em beliche.
Não
por acaso, os apartamentos ficam cada vez menores. As cidades se adensam. Nos
lugares onde a exiguidade é norma, os objetos devem cumprir a lei da
multiusabilidade. Tudo se compacta, otimiza-se. O tempo, já fracionado, agora
mergulha na escala do nano. Afinal, a vida tem que transcorrer numa minúscula
quadratura. O design adapta tudo ao breve, ao menor, ao versátil. A impressão é
que ficamos estreitos e quase desaparecemos sob a miríade de sombras projetadas
por um exército de pequenos totens.