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A vida secreta dos vizinhos

Publicado jornal O Povo em 1º de novembro de 2012. 

O que sabemos sobre nossos vizinhos? Sendo honesto, é uma pergunta que me faço mais por curiosidade que por interesse genuíno. Minha vizinha é uma professora que costuma acender palitinhos de incenso nos fins de semana e lavar a louça com o rádio ligado na FM. Recebe poucas visitas. Quando tinha sete anos, meu vizinho da esquerda era um velho com Alzheimer que invadia nosso quintal, desvencilhava-se do pijama e urinava nas roupas estendidas. A mãe ficava brava, mas perdoava porque o vizinho tinha essa doença que transformava os muito velhos em muito meninos.

Aos 12, dividimos a vizinhança com uma academia de caratê (à esquerda) e uma família triste (à direita). A vizinha da frente, contavam na rua, traía o marido. A de trás tinha uma locadora de videogame e uma mercearia. E adivinhava o futuro nas cartas. A primeira mulher que flagrei de sutiã e calcinha foi uma vizinha. O primeiro animal morto foi o gato que caiu na caixa d’água vizinha. O primeiro beijo, na vizinha. A primeira amizade desfeita, com o vizinho. A primeira briga, com o primo do garoto que passava férias na casa vizinha. 

Mudei de bairro uma dúzia de vezes. Posso falar de cátedra do assunto. Sei quando vizinhos vão causar problema ou, amistosos, serão gratuitamente prestativos. Aqui, por exemplo, há uma legião de tipos. O vizinho taciturno, o melancólico, o alcoólatra, o cozinheiro, o trabalhador, o madrugador, o de meia idade que mora com uma cadela, a vizinha adolescente, o vizinho cujos filhos vêm aos sábados e domingos. Quando ameaçam se entediar, o pai açoita as panelas com uma colher de pau e fala bem alto: “Vocês são os melhores filhos do mundo”. Acanhados, respondem baixinho: “E o senhor é o melhor pai do mundo”.

Os barulhos do apartamento vizinho são de liquidificador, prato contra prato, talher contra talher, máquina de lavar, uma vozinha distante cantarolando uma música antiga. O cheiro do corredor é resultado dos odores vizinhos: shampoo, assado de panela, fumaça de cigarro, amaciante, perfume e, ocasionalmente, sardinha frita, que, de tão forte, dispensa comentários. A trilha sonora é composta pelo som do ventilador do apartamento 17, o ronronar da máquina de lavar do 14, a felicidade estridente das crianças do 3, do 7 e do 10, com destaque para o choro do recém-nascido em alguma região do prédio.

O 13 é o Reginaldo, o único vizinho de quem sei o nome. Engenheiro aposentado, é velho, mas não mija nas roupas da lavanderia. Pela ordem, Reginaldo gosta de: relembrar amores, falar dos filhos, discutir política. Podia namorar a vovó, é verdade, mas agora a vovó abraça a gente e diz que está chegando a hora dela e faz uma caretinha que corta o coração. Não ia dar certo.

Outra pessoa que conheço no condomínio é o zelador, o Jorge, a quem me dirijo sempre muito respeitosamente e digo, mesmo com receio de parecer ridículo: “seu” Jorge. O “seu”, não tenho vergonha de admitir, sai quase murmurado. É que fico querendo rir ao imaginar o zelador do meu prédio cantando “burguesinha, burguesinha, burguesinha”. Se acontece de chegar da rua depois do almoço, (“seu”) Jorge faz o mesmo comentário sobre o clima. Sorrio, digo “ligaram o maçarico no três” e subo as escadas. Jorge volta a olhar a rua.

São 22 apartamentos distribuídos em dois blocos. É sol durante a maior parte do dia. Ímpar, o número encara o Residencial Central Park. O Central Park de verdade fica em Manhattan, Nova York, uma cidade que foi parcialmente devastada pelo Sandy, a supertempestade. Até onde pude descobrir, Sandy é um fenômeno da natureza. Jorge não comentou nada sobre o Sandy, que também dá nome a uma cantora. Jorge não tem opinião sobre a Sandy.

Dois blocos. Corredores longos. Azulejos brancos. Um corrimão verde-cana com marcas de ferrugem nas forquilhas. O 13 era ocupado por duas mulheres. O 18 estava para alugar. O 15 foi assaltado. O 22 tem um carpete onde se lê: “Bem-vindos”. À porta do 19 há uma margarida de pano que engana o beija-flor. No 20, uma guirlanda e três jarros com plantas.  
 
O prédio tem por vizinhos: à esquerda, um terreno baldio; à direita, uma casa vazia. Aos fundos, um quintal com árvores. Às vezes ocorre de um coco despencar das alturas no meio da noite. Se estiver acordado e muito concentrado, tomo um susto dos grandes. Se estiver dormindo, nem reparo. Acredito que os vizinhos também não.  

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