Texto publicado no jornal O Povo em 25/10.
De antemão, é preciso advertir: não se
enganem. Zumbis são mortos-vivos e nesse fato não reside qualquer ambiguidade
semântica ou contorção teorética que nos faça acreditar no contrário. Numa
ligeira revisão de literatura feita na Wikipédia, descobre-se que os zumbis são
criaturas que, a despeito da inevitabilidade do fim, arremetem contra a lei
mais básica da vida – a morte, seu reverso incontornável -, animando-se a
prorrogar a estadia na comunidade vivente. Agora, porém, com um propósito distinto:
dotados da lucidez além-túmulo, buscam subverter a dinâmica dos processos sociais.
Deliberadamente escamoteada pela indústria do entretenimento, é dessa ainda
inexplorada pulsão transformadora dos zumbis que trataremos agora.
Qual a imagem que temos dessas criaturas? Graças
ao cinema, a pior possível. Em termos genéricos, são representados, ainda que
protagonistas, como nada além de uma porção ambulante de matéria decomposta, não
importando, para efeito narrativo, a real natureza da motivação subjetiva das
personagens. Reduzidos a cadáveres humanos de olhar esgazeado, perseguem estupidamente
o que, nessa etapa da existência post-mortem, constitui a fonte
energética única para seguir na longa caminhada até o abismo derradeiro: a
carne. Superficial e despolitizada, essa é a mensagem expressa em filmes,
livros, quadrinhos e jogos eletrônicos.
Há outras, porém. Habitante cativo da
ambivalência, o zumbi é um animal político. Sem medo de incorrer em exagero,
afirmo: os mortos-vivos têm tudo para se adaptar melhor a uma realidade em que
o lançamento de um novo produto da Apple atrai mais atenção que a chacina de
comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul.
A pergunta é: qual o devir do zumbi? Corpo
que se desfaz, mas que sobrevive à própria desmaterialização, restando apenas
nessa urgência incapaz de se satisfazer. Desse modo, a contradição fundamental
do ethos
zumbi é até simples: à revelia da falência orgânica, é um ser em processo,
imanente, que adere ao tecido da cidade e, por extensão, ao dos seres vivos,
deles retirando o sustento. A temporalidade do zumbi é também contrária ao
establishment.
Nela percebe-se o “corpo desterritorializado” de que fala
Deleuze. “Corpo sem órgãos”, vagante, cujo deslocamento físico dá-se em função
de uma fome sabidamente primordial, livre da superfluidez das redes sociais e dos
condicionamentos mobilizados por uma empresa global publicitária cada dia mais intrusiva.
Polifônico sem emitir uma única palavra, à
exceção das fecundas vocalizações guturais, o zumbi é a representação máxima do
indivíduo que exibe à comunidade as marcas e sedimentações dos processos
acumulados (vestuário esgarçado, acessórios fora de moda, luxações, coagulações,
mutilações etc.). Desinibido, expõe-se a cru. E, num ato de inteira
harmonização com o self, dá de ombros para os mecanismos repressores de peso e contrapeso
que regulam as condutas sociais, mostrando-se como é: sanguinolento, insaciável,
siderado, pronto para atacar, mas, se observado com distanciamento científico, fundamentalmente
desprotegido, frágil e pueril.
O que nos leva a acreditar que os zumbis correspondem,
hoje, a um tipo especial de vanguarda. Espécie de “indignados mortos-vivos”,
pode-se dizer qualquer coisa dessas criaturas repugnantes, menos que reagem com
indiferença quando seus interesses estão em jogo. Zumbis abominam a hierarquia
e os encaixotamentos identitários. Zumbis não têm nação e, numa das séries televisivas
de maior prestígio dedicadas ao assunto, são apropriadamente chamados de
“errantes”: entidades cuja destinação é sempre processual, num vir a ser
tendente ao horizonte.
Morto reanimado ou ser humano irracional? Zumbis são
conceitos desgarrados que tiram pedaços da nossa integridade física e moral,
revelando o que temos de podre (nas vísceras e no caráter).
É isso o que
podemos aprender com os zumbis: a estarmos vivos, muito vivos.
É essa também a explicação para que a popular
zombie
walk (ação organizada como “performance de arte surrealista”) tenha se
convertido num evento de razoável poder contestatório dos hábitos
contemporâneos, integrando-se à agenda de protestos no mundo todo. A contar de
hoje, faltam oito dias para a próxima caminhada dos mortos, flashmob
que começou nos Estados Unidos e de lá se espalhou por muitos lugares. Acontece
no Dia dos Finados, uma sexta-feira.