Publicado no jornal O Povo em 11/10/2012.
Um dia perguntei à garotinha se acreditava
em monstros. Vampiros ou lobisomens?, quis saber. O rigor taxonômico
sobrenatural e o senso de diferenciação embutidos na questão me assustaram à
beça, mas a dúvida tinha lá seu fundamento. Pode ser qualquer um, respondi. A menina
continuou: não havia tanto tempo, vira uma criatura bem esquisita na própria
casa. Onde? Na cadeira. Que cadeira? Aquela. Com o mindinho, apontou o móvel de
plástico no quarto repleto de bonecas, algumas maiores, outras menores, mas
todas de olhar vidrado. Ali?, duvidei. Sim, repetiu, bem ali. Estava sentado?
Estava, e girava a cabeça. No sentido horário ou no anti-horário? A menina fez
cara de espanto: o que é sentido horário, titio?
Duda tem seis anos. Seus filmes prediletos:
Barbie
Cinderela e Atividade Paranormal. Cores: rosa e lilás. Uma coisa que adora:
histórias de terror cujos protagonistas, as bonecas desatinadas, caminham
sozinhas e dão voltas inteiras na cabeça, em qualquer sentido. O que não
suporta: falar ao telefone por mais de dois minutos. Passado o tempo,
despede-se de quem quer que seja com um “a vovó quer falar contigo”. Distração
favorita: desenhar a família perfeita, com pais, irmãos, tios e tias de mãos
dadas sorrindo para o retratista. Uma qualidade: é inventiva. Um defeito: é atavicamente
preguiçosa.
Conversando com a Duda, não foi tão difícil
assim imaginar um monstro indolente, com chifre na ponta do nariz, fartos tufos
de pelos espalhando-se por todo o corpo a partir das orelhas, descansando as
pernas, se tivesse pernas, numa tarde quente de outubro, enquanto a maior parte
das pessoas que conheço trabalhava ou estudava ou via o capítulo da novela. Pedi
que desenhasse o monstro. Ficou realmente parecido. Em seguida, tratamos de elaborar um conjunto de características e motivações para essa criatura fantástica,
assustadora, mas, por alguma razão, fundamentalmente doméstica. Fiz à Duda uma
pergunta derradeira.
Onde vivem os monstros?
Que artifícios usam para enganar a morte? Monstros
creem em monstros? Dançam ao lusco-fusco ou apenas ao raiar do dia? Por acaso
dispõem de uma enormidade de meios para driblar o sono, a loucura, o medo, a
inveja, a enfermidade, a espera, a saudade? Monstros enlouquecem? Têm natureza
dúbia? Do que se alimentam? Fabricam cerveja, celebram a hora inexata, comentam
novelas, sofrem de amor – seria ingênuo supor que, na vida espetacularmente
diversa dessas criaturas, haja espaço, o mais ínfimo que seja, para a desgraçada
contrariedade que é sofrer de amor?
A menina não tinha resposta para nenhuma
dessas perguntas, mas divertia-se imaginando. Entendia que era uma brincadeira
e criar universos, uma necessidade. Assim ficamos de conversa mole uma tarde
inteira, ao longo da qual as Barbies louras e longilíneas, enfileiradas na
estante ou atiradas no chão, haviam assumido ares de enigma. Batizei esse
procedimento lúdico de “Desgoverno da Razão Aplicado ao Entretenimento
Infantojuvenil”, um nome pomposo para algo que sempre fiz sozinho no quintal.
Agora, saltem no tempo e no espaço. Deixem
a Duda de lado. Pensem no Kauã, também de seis anos. Kauã não me conhece. Kauã
não conhece minha sobrinha. Eu não conheço o Kauã, o caçula de uma ninhada de
dez irmãos de uma família pobre, mas sei algo de sua história. Algo que alegra
e entristece. Na última segunda-feira, a tia da escola pública onde o Kauã
estuda entregou ao menino lápis de cor e papel. A atividade era livre. Desenhem
o que quiserem, rabisquem o mundo, promovam algazarra. A turma explodiu de
felicidade.
Menos Kauã, que se levantou da cadeira,
andou devagar até a professora e devolveu a folha. Estava branca. Entregou os
lápis. Não tinham sido usados. No mesmo passo inseguro, voltou para o fundo da
sala. Lamentou, mais para si que para a tia: “Eu não sei desenhar”. Não era apenas
o desenho. Kauã tinha dificuldade de brincar, de imaginar outro mundo que não aquele,
povoado de silêncio, solidão e mutismo. O mundo do Kauã não comportava os
monstros fantásticos. Talvez porque fosse monstruoso, mas de uma maneira cruel.
Aflita, a professora tomou do lápis, da
folha e da mão do menino, que se deixou conduzir. A primeira figura a surgir no
branco foi um sol. Kauã abriu um sorriso. A segunda foi um pássaro. A
gargalhada veio fácil. A curiosidade não tardou: “Como faço pra desenhar esse
pássaro, tia?” Bastam dois riscos. “E o sol?” É apenas um círculo.