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Lugar de gente feliz



Dez cigarros depois, o texto fica pronto, não era o que pretendia, nunca é, parece saído de alguma oficina mecânica forjada de última hora no canto mais escurinho do cérebro, uma nota informativa do quanto nos afastamos do que cremos ser quando as engrenagens da criação – expressão ridiculamente desgastada, eu sei – se põem em movimento.

Trata-se da crônica da crônica da morte anunciada, desde o início da semana tinha essa certeza difusa de que as coisas não seriam fáceis nos próximos sete dias, de modo que tratei imediatamente de assumir a causa. Escrevo para tentar compensar algo, não essa bobagem da mãe ou qualquer outra, mas uma que só vou descobrindo à medida que escrevo.

É um pedido de desculpas, caro leitor, desculpa, eu devo desculpas, estou aqui ouvindo música e pensando que talvez fosse tudo diferente em outra cidade, em outra época, em outra vida, a gente começa a escrever e acha que o ponto de partida fatalmente conduzirá ao de chegada, que é o mesmo que esboçamos na noite anterior, qual nada, é uma surpresa imensa perceber que dois pontos ideais  traçados com  planejamento e rigor e energia raramente coincidem na prática, é sempre um ponto diferente, uma chegada, uma partida diferentes, baita surpresa essa agora, mas tudo bem, quando nascemos o único aviso que nos dão é que de agora em diante o que vier figurará totalmente fora do roteiro, trate de se acostumar.

Toda essa cobrança tem acabado comigo, nunca havia percebido o quanto é grande, forte, presente etc., talvez seja algo a ser trabalhado num nível psicológico, cármico, em algum nível, talvez seja carência de potássio, alguma deficiência orgânica só então percebida, uma fraqueza de caráter, de criação, não faço ideia do quanto meus pais investiram tempo e dinheiro na minha formação, não seria razoável supor que simplesmente lavaram as mãos, todavia, de algum modo sinto que certas partes teriam merecido um cuidado especial, e é dessas partes mais delicadas que estou falando agora.

O calango morreu, conforme dizia. Agora há pouco três homens passaram na rua ao lado, corriam e gritavam, foi uma breve comoção aqui no condomínio, o andar de cima inteiro se mobilizou para assistir de camarote à fuga do ladrão, é uma área bastante povoada por trombadinhas, desses que roubam celular, então foi assim animada esta manhã de quarta-feira.

Como ia dizendo, o calango está morto, e provar do fracasso tão cedo do dia é uma experiência que tem um lado bom, cumpre dizer, já que o ruim é quase evidente, a morte estúpida do lagarto estúpido que caiu inexplicavelmente da parede em direção ao triângulo das bermudas que é a pia da lavanderia do condomínio.

Como sei que morreu? Apareceu em cima do muro, revirado, seco do sol da manhã, logo imaginei que o porteiro havia removido o corpo do bichinho, até ontem à noite repousado no vão escuro, expectante, coube a mim apenas a tarefa de empurrar a pobre criatura de deus para o terreno vizinho, não iria conviver nem mais um segundo com a terrível verdade de que poderia ter resgatado do fundo do poço aquele animal.

De resto há muita vida pela frente, e vale mesmo a pena tentar entender o que esse cara está nos dizendo. 

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