
Ícone da música internacional romântica (foto) comemora recorde de vendas e disco d'ouro na temporada 91-92.Em dúvida se devia realmente puxar conversa, menciono, meio que de brincadeira, o bóson de Higgs. Em poucas palavras, tento explicar que se trata de um enigmático mecanismo que o universo forjou, há muitos bilhões de anos, a fim de garantir a própria existência e, se possível, a de sua prole, que inclui múons, vegetais, teleaulas e as piadas do Espanta reunidas em DVD.
Um exemplo clássico de autocriação, garanti. Pelo menos era o que havia entendido depois de ler as quatro páginas de reportagem da revista, acompanhadas de um estonteante infográfico, e de flertar com as sugestões para complementar o estudo oferecidas ao final.
Em suma, continuo a falar, havia toda aquela massa compacta e superaquecida boiando no pasto sideral, vinda nem deus sabe de onde. Essa massa permaneceu comprimida por centenas de milhares de anos, até que chegou o momento de ocupar cada ponto do universo com energia escura.
A energia escura, cuja estrutura é um grande mistério, é responsável por 95,4% da composição do universo. É uma espécie de piche primordial, por assim dizer.
Após o gatilho inicial, o volume condensado de matéria quente deu lugar a tudo que vemos e também ao que não vemos. Do pastel ao bico do peito, do CD pirata do Patati Patatá à tinta acaju - a semente fora lançada naquele instante. O avanço irrevogável da experiência humana viria em seguida.
Antes, porém, houve uma explosão - faço um gesto largo, superlativo, na tentativa de tornar transparente e didática a escala de enormidade dos acontecimentos que se deram no momento do Big Bang. Como consequência, quase levo abaixo uma senhora corcunda que se mantinha quieta no assento preferencial. Peço desculpas e retomo o monólogo, encerrando o teatro com o “universo inteiro mergulhado num movimento contínuo e caudaloso: xuaaaaaa”.
O resultado é que estamos aqui, agora: eu, você e a tripulação do Messejana/BR Nova-Centro.
O motorista, cuja falta de apetite para narrativas cósmicas não parecia tão evidente quando começamos a conversar, limitou-se a sacudir a cabeça negativamente, desinteressado. Os olhos estranhamente semicerrados já miravam a estrada, as mãos firmemente atadas ao volante guiavam nossos destinos em direção à avenida Aguanambi.
Volto para o meu lugar, reflito por dois ou três segundos sobre a apresentação, refaço o percurso metodológico que acreditava seguro.
Na verdade, tem sido difícil disfarçar a decepção. Desolado, passo a me dedicar integralmente à matéria ordinária, algo que um escritor espanhol denominaria de “abundância infracotidiana”: o limite de velocidade da via, por exemplo. No trecho da BR-116 que vai do terminal até a rotatória, 80 km/h.
É possível que esteja enganado. Seja no meio jornalístico, seja no literário, o preenchimento de lacunas com informações coletadas em alguma reserva ficcional – pura invenção - é procedimento bastante comum.
Tento adivinhar o nome da canção que começa a tocar no rádio, mas o vento carrega a música para longe, para bem longe, para muito, muito longe, para depois do Cherry, para depois do viaduto.
Mas não demora e logo consigo assobiar a melodia. Até cantarolo. A música que tocava no rádio da linha Messejana/BR Nova não poderia ser outra: Dona, do Roupa Nova.
Enquanto me permito embalar na suavidade brega da canção, anoto mentalmente: um homem gordo passa correndo no canteiro central, um cachorro morto descansa perto do guard rail, garçons encostados na coluna fumam o quinto ou o sexto cigarro da noite, uma mulher de vestido brilhante acena para um motoqueiro, um carro enguiçado num ponto mais escuro da avenida aguarda socorro mecânico, um culto evangélico e um motel dividem praticamente a mesma calçada.
“Deus é fiel. Você crê?”, interroga o pastor.
É a paisagem fantasmagórica da BR.
Alguém levanta, aciona o botão de parada, que emite um sinal agudo: piiiiiii. Uma luzinha pisca a intervalos regulares no vão da porta e no painel. Restam quatro pessoas.
A música agora é Always, do Bon Jovi.
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