Pular para o conteúdo principal

Um segredo


Ainda sobre a historinha da livraria no sábado, há algo que gostaria de contar.

Uma coisa me assombrou, e assombrar é um jeito exagerado de falar, evidentemente. Quando digo "assombrar", quero dizer apenas que algo me surpreendeu tanto que me vi forçado a largar o que estava fazendo, mirar algum ponto distante, como uma nuvem ou um operário empoleirado no alto de um edifício em construção, e pensar no quanto as coisas não são o que achamos que são. Ou pelo menos não apenas o que achávamos que eram, se me entendem.

De todo modo, minha cara de bobo era indisfarçável. Imaginem o seguinte: numa tarde quente dessas de dezembro, um senhor queria muito agradar a sua esposa, que estava realmente chateada com ele por causa de uns gastos extras que o marido andara fazendo no comércio da cidade. Nada especial, apenas excessos de um homem estúpido, mas, como eles eram pobres, a mulher se aborrecera.

Então, esse senhor inquieto, mesmo sem saber muito bem o que resultaria de toda aquela ânsia em agradar a esposa, começou a remexer as ferramentas que guardava na cozinha do antigo restaurante. Logo dezenas de potes estavam destampados. Havia massa de bolo espalhada no chão e dúzias de cascas de ovos partidas sobre a mesa.

Nem tudo, porém, era de fato utilizado no projeto gastronômico, e ele seguia experimentando: por tentativa e erro, como se tateasse no escuro alguma fórmula mágica, continuava a procurar algo que não saberia explicar com exatidão o que era.

No meio daquela feira, o homenzinho podia ser visto avançando sobre o fogão, apertando botões, limpando freneticamente os dedos no avental, anotando frações na caderneta, checando o ponto numa panela, correndo em direção à janela para espiar o tempo: era perto das 19 horas.

Bom, o fato é que, algumas garrafas de leite e latas de gordura e açúcar depois, deu-se o milagre. Algo fantástico tinha acontecido.

Tal foi sua cara de espanto (e, portanto, de bobo) quando, depois de levar uma boa colherada da novidade à boca, percebeu: havia criado o sorvete. É claro que, naquele instante, o sorvete ainda não era chamado de sorvete, mas de outra coisa qualquer, e só passaria a ter esse nome muitos anos à frente.

Cercado por crianças atracadas com livros e brinquedos, entretidas com histórias de fadas, castelos, princesas e monstros, cheias de respostas surpreendentes para dar a qualquer um que estivesse disposto a ouvir com atenção, essa era precisamente a minha cara: a de quem havia acabado de inventar o sorvete.

***

O garotinho aproxima-se com uma caixa na mão. Era uma caixa pequena. Nela não caberia um par de sapatos, por exemplo.

Ao contrário dos outros meninos, ele brincava sozinho. Sentada num tamborete de madeira, a mãe lia um volume qualquer que, de tempos em tempos, lhe provocava algum riso.

Então, o menino estende a caixa a um adulto, que a recebe como se fosse um presente. “É um segredo”, sussurra o menino.

“Um segredo”, repete o adulto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d