Pular para o conteúdo principal

A Gangue do Exu-mirim

NOTA>>> Bom, esse texto, que prefiro deixar sem imagem, saiu na página semanal da Aerolândia no jornal O POVO, hoje, sexta-feira, dia em que perdi todos os arquivos do meu notebook, num claro indício de que coisas ainda piores podem ocorrer caso insista em sair de casa ou do trabalho diretamente pra outro lugar. O texto, um estudo rasteiro, fala das gangues de exus-mirins que aterrorizam os ricos e remediados de Fortaleza, mas sobretudo os altos remediados (classe média HD), visto que os ricos encontram não sem dificuldades alguns mecanismos para se prevenir do ataque cada vez dia mais frequente e pernicioso desses obreiros do terrorismo, os exus-mirins, que nada mais são do que meninos na faixa dos 10 aos 17 anos cujo corpo funciona prioritariamente a base de crack, Coca e 7Belo. Por favor, leiam o texto com atenção. Ele integra uma série de microensaios que pretendo publicar em livro qualquer dia.


A GANGUE DO EXU-MIRIM: UM ESTUDO

Francis Santiago defronta-se com o mistério presente no terrorismo infanto-juvenil

Dimenor, 12 anos, era um cotoco purulento de gente quando o líder dos Carrascos do Vicente Pinzón decidiu preteri-lo em favor de Demoim (segundo na linha sucessória da agremiação delinquente). Nesse instante, movido pelo mais viscoso sentimento humano, o rancor, Dimenor, mesmo em tenra idade e sem haver frequentando qualquer aula de empreendedorismo no Sebrae, resolveu fundar a sua própria firma marginal. Assim nasceu a Gangue do Exu-Mirim, grupo responsável por revolucionar o modus operandi das trupes criminosas infanto-juvenis em Fortaleza. De que maneira esse feito espetacular foi possível? Adotando a zombie walk como ferramenta preferencial nas abordagens criminosas em avenidas que cortam o Dunas, Cocó e Cidade 2000.

Já fartamente utilizada por adolescentes de classe média engordados à custa do Subway, a zombie walk consiste na perseguição pé-ante-pé a outrem, seja rastejando, seja deslocando-se com simulada onerosidade. O esporte, bastante comum nas metrópoles brasileiras, deve-se, antes de mais nada, a ampla aceitação da figura carismática do zumbi, um morto-vivo renascido por obra dos jogos de computador e da falta de virilidade da contemporânea jeunesse.

A modalidade prevê uma tal encenação teatral cujo único objetivo é sugerir a perda visceral da robustez física e o mais profundo desânimo, flagrantes naquele que ataca projetando o próprio corpo devastado pelo consumo sistemático de crack, Coca-Cola e 7Belo. De modo geral, o olhar de esfuziante agonia do exu-mirim é resultado desse coquetel. Recorde-se que o fito do simulacro de agressão está quase sempre direcionado à obtenção de nacos frescos de cérebro humano (caso dos zumbis) ou à aquisição ilícita dos pertences de outra pessoa (homem ou mulher).

Ao contrário do que apontam reflexões na área dos estudos culturais, os numerosos exus-mirins pilham as riquezas do PIB da Capital não para suprir carências das vitaminas essenciais ao bom desenvolvimento de qualquer criança ou adolescente de 12 anos. A partir de dados coligidos in loco (Pau Fininho, por exemplo), verificou-se que o montante de recursos oriundos das investidas contra luxuosos Citröen e Civic é empregado, por ordem decrescente, em crack / maconha; lan house e, finalmente, recheados sabor morango.

Via de regra, a vítima dos exus-mirins é surpreendida por membros da gangue enquanto aguarda parada no semáforo, nas esquinas ermas, em saídas de shoppings, supermercados, cinemas e academias. Segundo especialistas do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, o raio de ação da célula terrorista infanto-juvenil (o grupamento tem como ícone um Monteiro Lobato opiáceo) limita-se ainda à área compreendida pela SER II, o que, em leitura sociológica superficial, faz todo o sentido: mais que em qualquer parte da cidade, é em bairros como Dunas e Praia do Futuro que a cristandade branca, heterossexual e pagadora de impostos depara-se com sua face mais horrorosa, expressa em meninos trajados porcamente cuja aparência aproxima-os bem mais de zumbis que de pessoas humanas.

Sob a liderança de Dimenor, esse Prestes encapetado, a Gangue do Exu-Mirim tem logrado escapar ao cerco de policiais, agentes comunitários, repórteres “urubus”, mães desesperadas e marchas de famílias empoleiradas no dinheiro em prol da paz, do sossego, da TV a cabo e da pizza GG com borda recheada de catupiry. Simultaneamente a tudo isso, corre processo de beatificação do Dimenor, que vem sendo comparado a Padre Cícero.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas