O INTELECTO CONTRA O BAIXO ASTRAL
Francis Santiago
É fato: a imagem do programa de polícia comunitária Ronda do Quarteirão não é mais a mesma. Se antes os PMs-delleuzianos ganhavam coxinhas, porções de baião com queijo, enroladinhos de salsicha e outros acepipes em várias cadeias de lanchonetes e churrascarias da periferia de Fortaleza, agora são tratados a pão e água. Tudo fruto dos recentes destrambelhos dos homens da farda azul-bebê, desenhada por Lino Villaventura num momento de extremo deleite intimista, mas sem qualquer preocupação com a moral da força policial frente à viril bandidagem.
É fácil entender por que uma parcela dos jovens soldados do Ronda, que deveriam substituir a beligerância priápica dos antigos policiais por uma abordagem que conjugasse a maciez do colo materno à rígida educação paterna, caiu, senão no descrédito, num limbo escuro e frio. Não foi da noite para o dia, nem de uma hora para outra. Tampouco atingiu a totalidade da corporação, que ainda é formada por bons PMs, homens e mulheres cujas vidas foram entregues à execução do dever de proteger e guardar a sociedade dos males criados por ela mesma.
Vejamos. No começo, tudo era um grande forró. As pessoas saíam às ruas e festejavam efusivamente cada Hilux trafegando por vias sem pavimentação com copos de café e bombas rasga-latas, que jamais foram confundidas com tiros de revólver. Eram tempos de comemorar a novidade. Meninos de calção rasgado e camisas esburacadas emparelhavam-se aos possantes 4x4 em busca de sentir com as próprias mãos a lataria da máquina. Em casa, engasgavam-se: “Mãe, é de verdade!”.
Donas de casa postavam-se na soleira da porta das 13 às 17 horas. Quando, de repente, o Ronda cruzava a esquina, desenhavam no rosto o melhor sorriso. No barzinho, homens cansados do dia a dia discutiam se um carrão daqueles teria custado muito ao governo. Mulheres solteiras e casadas demoravam-se em conversas com os soldados mais atenciosos, que levavam o conceito de polícia cidadã às últimas conseqüências.
Mas o namoro não duraria tanto. Logo os primeiros vexames dos heróis do povo os transformariam em quase vilões. O azul-bebê, que antes denotava retidão espiritual, um zen-budismo aplicado à realidade das ruas, passou a significar, principalmente, falta de habilidade. As sucessivas colisões dos carros em situações de total comicidade são a prova de que uma boa polícia precisava de bem mais que aulas de ioga e pilates. O papo relaxado com as moças foi visto com malícia. Casos de abuso de autoridade surgiram aqui e ali.
Evidenciava-se que não seria apenas com disciplinas de Introdução ao pensamento crítico de Spinoza e Como rastrear perfis suspeitos no Orkut que os homens da lei reuniriam conhecimento suficiente para combater a criminalidade crescente. A velha polícia, antes espezinhada, erguia novamente a voz. Resguardando o anonimato, seus membros bradavam na imprensa. Diziam: eles lêem “Vigiar e Punir”, sabem de cor e salteado a saga do vampiro Edward, de “Crepúsculo”, mas não conhecem o traçado sinuoso do Pau Fininho nem as veredas do Pantanal.
No meio desse fogo amigo, o cidadão de bem, que paga suas contas e reza antes de dormir, se pergunta: estarei vivendo o terror previsto nas piores distopias? Ninguém sabe. De todo modo, esse novo cenário já se reflete até mesmo na microeconomia. Comerciante no Mercado São Sebastião, João Sá Mendes Albuquerque, 78, lamenta: nos três últimos dias, não vendeu sequer uma viatura de flandre do Ronda do Quarteirão. “As ambulâncias têm saído mais.”
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