SEM ÁGUA NO FIM DO TOBOÁGUA
Panóptico
Está sentado e finge desafetação quando na verdade é apenas mais um afetado na livraria. Tem um livro nas mãos, Gonzos e Parafusos, aquele de capa lustrosa, branca, com título em alto relevo, cuja autora passou dias enfurnada num cubo branco sendo alimentada por amigos e familiares. Sabe disso porque leu nas páginas dos cadernos de cultura. Viu Rubem Fonseca estendendo a mão num gesto falsamente caridoso. Acompanhou o debate estéril que se seguiu ao happening. Hoje, quem se lembra?
Veste camisa de mangas compridas dobradas na altura do cotovelo, calça jeans e sandálias de couro. Está sentado no sofá da livraria. Fica rente à escada que leva ao pavimento de DVDs e CDs. O pavimento jamais freqüentado. Porque ele é um homem das letras, não da música, e sente orgulho de pertencer a esse universo. É algo distintivo, como a marca de Caim. Ali, enquanto sente leve incômodo sempre que alguém sobe os degraus da escada e faz o sofá trepidar, assiste ao desfile sensual de nádegas e pernas.
Conclui: não há grandiosidade no que a vista alcança sem peleja. É como o soldado que se depara com o inimigo entregue numa bandeja e não atrás de uma trincheira, pronto a devolver-lhe o fogo anunciado. Para ele, a bunda, mesmo fornida, mesmo embalada em calça preta de tecido sintético, brilhosa, encimada por uma cintura de costelas faltantes - para ele, essa bunda está dispensada de grandes emoções. Prefere a penugem alourada da vendedora de 1,67 metro que, sem desconfiar que alguém a observa, agacha-se para checar qualquer coisa na prateleira e volta de lá com o novo volume de receitas da Ana Maria Braga em mãos.
É tudo tão rápido: a blusa, já bem curta, sobe mais ainda, forcejada pelo movimento, e, nas costas, surge a ilhota formada por pelos bem claros, localizados entre as duas covinhas. Estão desgrenhados, e indicam uma touceira mais basta, como o veio ralo anuncia alguma vastidão de água doce.
Essa jovenzinha fogosa
Ela se recupera. A farda volta a cobrir a superfície do corpo. A impessoalidade reina, mas ele já está totalmente perdido na leitura. O homem ao lado, o mesmo que estivera encostado à bancada de lançamentos acompanhado da mulher, a mesma mulher que dissera “Veja, este é sobre a Sicília, mas você não vai gostar porque é um romance” – esse homem não ergue a vista um segundo sequer. Nem quando a bunda metida em tecido sintético preto estaciona à sua frente. Repara: ele tem um tique nervoso, balança freneticamente o pé esquerdo. Calça sapato esporte, sem meias, veste jeans e camisa pólo. A esposa, uma morena de 1,85 metro, pernas varicosas, bonita, vai e vem. Está empenhada em procurar o que quer que seja.
Olha bem pra ela e tenta imaginar que tipo de mulher é aquele. Não consegue. Há quanto tempo ela não tem um orgasmo? Passa.
Um casal jovem aproxima-se. Ele quer saber o preço de um livro. Ela se distrai. Salta numa perninha apenas, gesto parecido com o de uma criança. Exala contentamento. É infantil, até. Tem 22 anos? Um vestidinho bonito, faixa amarela atada à cabecinha, rasteira, pulseira, cabelo repicado, óculos da moda. O gesto permanece suspenso no pensamento: um passo de dança. Perna esticada, joelho flexiona-se, perna esquerda acompanha, as duas ficam próximas, o tronco finalmente chega. Um passo delicado de tango, certamente. Tudo porque algo a havia interessado a dois metros. Um maneirismo típico das meninas dessa geração, como o som gutural da gata Sabina.
Sem dúvida um ótimo programa
O celular toca. É a namorada. Levanta-se. Enxerga ao longe as pilhas de Alice no País das Maravilhas, edição primorosa, as pilhas sobre dragões e trovões, as pilhas de biografias, autoajuda, música, as pilhas de clássicos, de livros mais baratos. Ao fundo da livraria, o café. Todas as mesas estão ocupadas. Há tantos laptops repousando ali quanto pessoas. Um senhor abana-se com o semanário.
São 18h23, e a livraria do shopping mais freqüentado da cidade fervilha.
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